sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO XXVI

CAPÍTULO XXVI
EXORTAÇÃO PARA PROCURAR TOMAR A ITÁLIA E LIBERTÁ-LA DAS MÃOS DOS
BÁRBAROS
(EXHORTATIO AD CAPESSENDAM ITALIAM IN LIBERTATEMQUE A BARBARIS
VINDICANDAM)


Consideradas pois, todas as coisas já expostas, pensando comigo mesmo
se no momento presente, na Itália, corriam tempos capazes de honrar um
príncipe novo e se havia matéria que assegurasse a alguém, prudente e
valoroso, a oportunidade de nela introduzir nova organização que a ele
desse honra e fizesse bem a todo o povo, quer me parecer concorrerem
tantas circunstâncias favoráveis a um príncipe novo que não sei qual o
tempo que poderia ser mais adequado para isto. E se, como já disse,
para se conhecer a virtude de Moisés foi necessário que o povo de
Israel estivesse escravizado no Egito, para conhecer a grandeza do
ânimo de Ciro, que os persas fossem oprimidos pelos medas, e o valor
de Teseu, que os atenienses estivessem dispersos, também no presente,
querendo conhecer a virtude de um espírito italiano, seria necessário
que a Itália se reduzisse ao ponto em que se encontra no momento, que
ela fosse mais escravizada do que os hebreus, mais oprimida do que os
persas, mais desunida do que os atenienses, sem chefe, sem ordem,
batida, espoliada, lacerada, invadida, e tivesse suportado ruína de
toda sorte.


Se bem tenha surgido, até aqui, certo vislumbre de esperança em
relação a algum príncipe, parecendo poder ser julgado como dirigido
por Deus para redenção da Itália, contudo foi visto depois como, no
apogeu de suas ações, foi abandonado pela sorte. De modo que, tornada
sem vida, espera ela por aquele que cure as suas feridas e ponha fim
aos saques da Lombardia, às mortandades no Reino de Nápoles e na
Toscana, e a cure daquelas suas chagas já de há muito enfistuladas. Vê-
se como ela implora a Deus lhe envie alguém que a redima dessas
crueldades e insolências bárbaras. Vê-se, ainda, toda ela pronta e
disposta a seguir uma bandeira, desde que haja quem a empunhe.


Nem se vê no presente em quem possa ela confiar a não ser na vossa
ilustre casa, a qual, com a sua fortuna e virtude, favorecida por Deus
e pela Igreja, da qual é agora príncipe, poderá tornar-se chefe desta
redenção. Isso não será muito difícil, se procurardes seguir as ações
e a vida dos acima indicados. E, se bem aqueles homens sejam raros e
maravilhosos, sem dúvida foram homens, todos eles tiveram menor
ocasião que a presente: porque os empreendimentos dos mesmos não foram
mais justos nem mais fáceis do que este, nem foi Deus mais amigo deles
do que de vós. É de grande justiça o que digo: iustum enim est bellum
quibus necessarium, et pia arma ubi nulla nisi in armis spes est. Aqui
há uma grande disposição, e onde esta existe não pode haver grande
dificuldade, desde que se imite o modo de agir daqueles que apontei
como exemplo. Além disso, aqui se vêem acontecimentos extraordinários
emanados de Deus: o mar se abriu, uma nuvem revelou o caminho, a pedra
verteu água, aqui choveu o maná; todas as coisas concorreram para a
vossa grandeza. O restante deve ser feito por vós. Deus não quer fazer
tudo, para não nos tolher o livre arbítrio e parte daquela glória que
compete a nós. E não é de admirar se algum dos já citados italianos
não tenha podido fazer aquilo que se pode esperar faça a vossa ilustre
casa, e se, em tantas revoluções da Itália e em tantas manobras de
guerra, parecer sempre que nesta a virtude militar esteja extinta.
Isso resulta de que as suas antigas instituições não eram boas e não
houve quem soubesse encontrar outras; e nenhuma coisa faz tanta honra
a um príncipe novo, quanto as novas leis e os novos regulamentos por
ele elaborados. Estes, quando são bem fundados e em si encerrem
grandeza, tornam o príncipe digno de reverência e admiração; na Itália
não faltam motivos para introduzir-se qualquer reforma. Aqui existe
grande valor no povo, enquanto ele falta nos chefes. Observei nos
duelos e nos combates individuais o quanto os italianos são superiores
na força, na destreza ou no engenho. Mas, quando se passa para os
exércitos, não comparecem. E tudo resulta da fraqueza dos chefes,
porque aqueles que sabem não são obedecidos, e todos julgam saber, não
tendo surgido até agora alguém que tenha sabido se sobressair pela
virtude ou pela fortuna de forma a que os outros cedam. Daí decorre
que, em tanto tempo, em tantas guerras feitas nos últimos vinte anos,
sempre que se formou um exército inteiramente italiano o mesmo deu mau
exemplo, do que dão prova Taro, depois Alexandria, Cápua, Gênova,
Vailá, Bolonha, Mestri.


Querendo, pois, a vossa ilustre casa seguir aqueles homens excelentes
e redimir suas províncias, é necessário, antes de toda e qualquer
outra coisa, como verdadeiro fundamento de qualquer empreendimento,
prover-se de tropas próprias, pois não se pode conseguir outras mais
fiéis e mais seguras, nem melhores soldados. E, ainda que cada um
deles seja bom, todos juntos tornar-se-ão ainda melhores, quando se
virem comandados pelo seu príncipe e por este honrados e mantidos. É
necessário, portanto, preparar esses exércitos, para poder, com a
virtude itálica, defender-se dos estrangeiros.


E, se bem as infantarias suíças e espanholas sejam consideradas
terríveis, em ambas existem defeitos, pelo que um terceiro tipo de
infantaria poderia não somente opor-se-lhes, mas confiar em superá-
las. Porque os espanhóis não podem enfrentar a cavalaria e os suíços
deverão ter medo dos infantes, quando no combate os encontrarem
obstinados como eles. Já se viu, e vê-se ainda, os espanhóis não
poderem enfrentar uma cavalaria francesa e os suíços serem derrotados
por uma infantaria espanhola. E, se bem deste último caso não se tenha
tido plena prova, contudo viu-se uma amostra na campanha de Ravena,
quando as infantarias espanholas se defrontaram com os batalhões
alemães, que têm a mesma organização dos suíços; aí os espanhóis, com
a agilidade do corpo e auxílio dos seus pequenos escudos, haviam-se
colocado debaixo dos chuços alemães e estavam certos de feri-los e
matá-los sem que os mesmos tal pudessem impedir; realmente, não fosse
a cavalaria que os atacou, teriam morto todos os inimigos. Pode-se,
pois, conhecido o defeito de uma e de outra dessas infantarias,
organizar uma diferente, que resista à cavalaria e não tenha medo dos
infantes, o que dará qualidade superior aos exércitos e imporá a
mudança de táticas. Estas são daquelas coisas que, reformadas, dão
reputação e grandeza a um príncipe novo.


Não se deve, pois, deixar passar esta ocasião, a fim de que a Itália
conheça, depois de tanto tempo, um seu redentor. Nem posso exprimir
com que amor ele seria recebido em todas aquelas províncias que têm
sofrido por essas invasões estrangeiras, com que sede de vingança, com
que obstinada fé, com que piedade, com que lágrimas. Quais portas se
lhe fechariam? Quais povos lhe negariam obediência? Qual inveja se lhe
oporia? Qual italiano lhe negaria o seu favor? A todos repugna este
bárbaro domínio. Tome, portanto, a vossa ilustre casa esta incumbência
com aquele ânimo e com aquela esperança com que se abraçam as causas
justas, a fim de que, sob sua insígnia, esta pátria seja nobilitada e
sob seus auspícios se verifique aquele dito de Petrarca:


Virtude contra Furor
Tomará Armas; e Faça o Combater Curto
Que o Antigo Valor
Nos Itálicos Corações Ainda não é Morto.

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