sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO XII

CAPÍTULO XII
DE QUANTAS ESPÉCIES SÃO AS MILÍCIAS, E DOS SOLDADOS MERCENÁRIOS
(QUOT SINT GENERA MILITIAE ET DE MERCENARIIS MILITIBUS)


Tendo falado detalhadamente de todas as espécies de principados, dos
quais já no início me propus comentar, e consideradas, em alguns
pontos, as causas do bem-estar e do mal-estar dos mesmos, mostrados
que foram os modos pelos quais muitos procuraram adquiri-los e
conservá-los, resta-me agora falar de forma genérica dos meios
ofensivos e defensivos que em cada um dos citados principados possam
ocorrer, Dissemos acima como é necessário a um príncipe ter bons
fundamentos; do contrário, necessariamente, cairá em ruína. Os
principais fundamentos que os Estados têm, tanto os novos como os
velhos ou os mistos, são as boas leis e as boas armas. E, como não
pode haver boas leis onde não existam boas armas e onde existam boas
armas convém que haja boas leis, deixarei de falar das leis e me
reportarei apenas às armas.


Digo, pois, que as armas com as quais um príncipe defende o seu
Estado, ou são suas próprias ou são mercenárias, ou auxiliares ou
mistas. As mercenárias e as auxiliares são inúteis e perigosas e, se
alguém tem o seu Estado apoiado nas tropas mercenárias, jamais estará
firme e seguro, porque elas são desunidas, ambiciosas,
indisciplinadas, infiéis; galhardas entre os amigos, vis entre os
inimigos; não têm temor a Deus e não têm fé nos homens, e tanto se
adia a ruína, quanto se transfere o assalto; na paz se é espoliado por
elas, na guerra, pelos inimigos. A razão disto é que elas não têm
outro amor nem outra razão que as mantenha em campo, a não ser um
pouco de soldo, o qual não é suficiente para fazer com que queiram
morrer por ti. Querem muito ser teus soldados enquanto não estás em
guerra, mas, quando esta surge, querem fugir ou ir embora.


Para persuadir de tais coisas não me é necessária muita fadiga, eis
que a atual ruína da Itália não foi causada por outro fator senão o de
ter, por espaço de muitos anos, repousado sobre as armas mercenárias.
Elas já fizeram algo em favor de alguns e pareciam galhardas nas lutas
entre si; mas, quando surgiu o estrangeiro, mostraram-lhe o que eram.
Por isso foi possível a Carlos, rei de França, tomar a Itália com o
giz; e quem disse que a causa disso foram os nossos pecados, dizia a
verdade, se bem que esses pecados não fossem aqueles que ele julgava,
mas sim esses que eu narrei, e como eram pecados de príncipes, estes
sofreram o castigo.


Quero demonstrar melhor a infeliz qualidade destas tropas. Os capitães
mercenários ou são homens excelentes, ou não: se o forem, não podes
confiar, porque sempre aspirarão à própria grandeza, abatendo a ti que
és o seu patrão, ou oprimindo os outros contra a tua vontade; mas se
não forem grandes chefes, certamente te levarão à ruína. E, se for
respondido que qualquer um que detenha as forças nas mãos fará isso,
mercenário ou não, responderei dizendo como as armas devem ser usadas
por um príncipe ou por uma República. O príncipe deve ir pessoalmente
com as tropas e exercer as atribuições do capitão: a República deve
mandar seus cidadãos e, quando enviar um que não se revele valente,
deve substitui-lo, quando animoso deve detê-lo com as leis para que
não avance além do limite. Por experiência se vêem príncipes sós e
repúblicas armadas fazerem grandes progressos, enquanto se vêem tropas
mercenárias não causarem mais do que danos. Ainda, uma República
armada de tropas próprias se submete ao domínio de um seu cidadão com
muito maior dificuldade do que aquela que esteja protegida por tropas
mercenárias ou auxiliares.


Roma e Esparta foram durante muitos séculos armadas e livres, Os
suíços são armadíssimos e libérrimos, Das armas mercenárias antigas,
podemos citar como exemplo os cartagineses, os quais quase foram
oprimidos por seus soldados mercenários, ao fim da primeira guerra com
os romanos, a despeito de terem por chefes os próprios cidadãos de
Cartago. Felipe da Macedônia foi pelos tebanos feito capitão de sua
gente, depois da morte de Epaminondas, e após a vitória lhes tolheu a
liberdade, Os milaneses, morto o Duque Felipe, assalariaram Francisco
Sforza para combater os venezianos e o mesmo, vencidos os inimigos em
Caravaggio, a estes se uniu para oprimir os milaneses, seus patrões.
Sforza, seu pai, estando a serviço da Rainha Joana de Nápoles, deixou-
a repentinamente desarmada; por isso ela, para não perder o reino, foi
obrigada a lançar-se aos braços do Rei de Aragão.


E se venezianos e florentinos, ao contrário, tiveram aumentado o seu
domínio com essas tropas, e os seus capitães se fizeram príncipes mas
os defenderam, esclareço que os florentinos, neste caso, foram
favorecidos pela sorte, porque dos capitães de valor, aos quais podiam
temer, alguns não venceram ou tiveram de lutar contra antagonistas,
outros voltaram sua ambição para paragens diversas. Quem não venceu
foi Giovanni Aucut, por isso mesmo não se podendo conhecer de sua
fidelidade, mas todos estarão concordes que, tivesse vencido, os
florentinos estariam à sua mercê. Sforza sempre teve os Braccio contra
si, vigiando-se uns aos outros. Francisco voltou sua ambição para a
Lombardia, Braccio contra a Igreja e o reino de Nápoles. Mas, vejamos
o que ocorreu há pouco tempo. Os florentinos fizeram Paulo Vitelli seu
capitão, homem de muita prudência e que, de vida privada, havia
alcançado mui grande reputação. Se ele conquistasse Pisa, não haveria
quem negasse convir aos florentinos estar sob suas ordens, mesmo
porque, se ele tivesse ficado como soldado de seus inimigos, não
teriam remédio e, tendo-o ao seu lado, deveriam obedecer-lhe.


Os venezianos, se se considerar os seus progressos, ver-se-á terem
operado segura e gloriosamente enquanto fizeram a guerra sozinhos (o
que foi antes de voltarem suas vistas para a terra) sendo que, com o
apoio dos gentis-homens e com a plebe armada, operaram mui
galhardamente; mas, como eles começaram a combater em terra,
abandonaram essa prudência e seguiram os costumes de guerra da Itália.
No princípio de sua expansão terrestre, por não possuírem muito Estado
e por usufruírem alta reputação, não precisavam temer muito seus
capitães; mas, quando ampliaram suas conquistas, o que ocorreu sob o
Carmignola, tiveram a prova desse erro. Por tanto, tendo visto seu
valor quando sob seu comando bateram o duque de Milão e sentindo, de
outra parte, quanto ele esfriara no conduzir a guerra, julgaram não
mais ser possível com ele vencer dada a sua má vontade; e não podendo
licenciá-lo para não perder aquilo que tinham adquirido, para se
garantirem viram-se na contingência de matá-lo, Tiveram depois por
seus capitães Bartolomeu e Bergamo, Roberto de São Severino, Conde de
Pitigliano e outros parecidos, com os quais deviam temer as derrotas e
não suas conquistas, como ocorreu depois em Vailá, onde, num dia,
perderam tudo aquilo que, em oitocentos anos, com tanta fadiga, tinham
conquistado. Na verdade, destas tropas resultam apenas lentas, tardias
e fracas conquistas, mas rápidas e miraculosas perdas. E, como
apresentei estes exemplos da Itália que tem sido por muitos anos
dominada por armas mercenárias, quero analisar essas tropas por forma
mais genérica, a fim de que, vendo a origem e o desenvolvimento das
mesmas, se possa melhor corrigir o erro de seu emprego.


Deveis, pois, saber como, logo que nestes últimos anos o império
começou a ser repelido da Itália e o Papa passou a ter reputação no
poder temporal, a Itália dividiu-se em vários Estados. Na verdade,
muitas das maiores cidades tomaram das armas contra seus nobres, os
quais, antes favorecidos pelo imperador, as mantinham oprimidas, e a
Igreja, para obter reputação em seu poder temporal, as favorecia em
tal; de muitas outras, os seus cidadãos se tornaram príncipes.


Daí resultar que, tendo a Itália quase toda, chegado a cair nas mãos
da Igreja e de algumas repúblicas, não estando aqueles padres e
aqueles outros cidadãos habituados ao uso das armas, começaram a
aliciar mercenários estrangeiros. O primeiro que deu fama a essa
milícia foi Alberico da Conio, natural da Romanha, sendo que de sua
escola de armas vieram, dentre outros, Braccio e Sforza, nos seus dias
os árbitros da Itália. Depois destes vieram todos os outros que até
nossos tempos têm chefiado essas tropas, e o fim do valor das mesmas
foi que a Itália viu-se percorrida por Carlos, saqueada por Luís,
violentada por Fernando e desonrada pelos suíços.


A ordem que eles observaram inicialmente foi, para dar reputação a si
próprios, tirar o conceito da infantaria, Fizeram isso porque, sendo
eles sem Estado e vivendo da indústria das armas, poucos infantes não
lhes dariam fama e, sendo muitos, não poderiam alimentá-los; assim,
limitaram-se à cavalaria onde, com número suportável, as tropas podiam
ser nutridas e eles honrados. E, afinal, a situação tornou-se tal que,
em um exército de vinte mil soldados, não se encontravam dois mil
infantes. Tinham, além disso, usado todos os meios para afastar de si
e de seus soldados o cansaço e o medo, não se matando nos combates,
fazendo-se prisioneiros uns aos outros e libertando-se depois sem
resgate. Não atacavam as cidades muradas e os das cidades não
assaltavam os acampamentos; não faziam nem estacadas nem fossos, não
saíam a campo no inverno. Todas estas coisas eram permitidas nas suas
regras militares, por eles encontradas para fugir, como foi dito, à
fadiga e aos perigos; foi por isso que arrastaram a Itália à
escravidão e à desonra.




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