sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO XXV

CAPÍTULO XXV
DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE QUE MODO SE LHE DEVA
RESISTIR
(QUANTUM FORTUNA IN REBUS HUMANIS POSSIT, ET QUOMODO ILLI SIT OCCURREN
DUM)


Não ignoro que muitos têm tido e têm a opinião de que as coisas do
mundo sejam governadas pela fortuna e por Deus, de forma que os
homens, com sua prudência, não podem modificar nem evitar de forma
alguma; por isso poder-se-ia pensar não convir insistir muito nas
coisas, mas deixar-se governar pela sorte. Esta opinião tornou-se mais
aceita nos nossos tempos pela grande modificação das coisas que foi
vista e que se observa todos os dias, independente de qualquer
conjetura humana. Pensando nisso algumas vezes, em parte inclinei-me
em favor dessa opinião. Contudo, para que o nosso livre arbítrio não
seja extinto, julgo poder ser verdade que a sorte seja o árbitro da
metade das nossas ações, mas que ainda nos deixe governar a outra
metade, ou quase. Comparo-a a um desses rios torrenciais que, quando
se encolerizam, alagam as planícies, destróem as árvores e os
edifícios, carregam terra de um lugar para outro; todos fogem diante
dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder opor-se em qualquer parte. E,
se bem assim ocorra, isso não impedia que os homens, quando a época
era de calma, tomassem providências com anteparos e diques, de modo
que, crescendo depois, ou as águas corressem por um canal, ou o seu
ímpeto não fosse tão desenfreado nem tão danoso.


Da mesma forma acontece com a sorte, a qual demonstra o seu poderio
onde não existe virtude preparada para resistir e, aí, volta seu
ímpeto em direção ao ponto onde sabe não foram construídos diques e
anteparos para contê-la, E, se considerardes a Itália, que é a sede
destas variações e aquela que lhes deu motivo, vereis ser ela uma
região sem diques e sem qualquer anteparo, eis que se protegida por
convenientes forças militares, como a Alemanha, a Espanha e a França,
ou esse transbordamento não teria feito as grandes alterações que fez,
ou não teria ocorrido. Penso que isto seja suficiente quanto ao que
tinha a dizer acerca da oposição que se pode antepor à sorte em geral.


Mas, restringindo-me mais ao particular, digo por que se vê um
príncipe hoje em franco e feliz progresso e amanhã em ruína, sem que
tenha mudado sua natureza ou as suas qualidades; isso resulta, segundo
creio, primeiro das razões que foram longamente expostas mais atrás,
isto é, que o príncipe que se apoia totalmente na sorte arruina-se
segundo as variações desta. Creio, ainda, seja feliz aquele que
acomode o seu modo de proceder com a natureza dos tempos, da mesma
forma que penso seja infeliz aquele que, com o seu proceder, entre em
choque com o momento que atravessa.


Isso decorre de ver-se que os homens, naquilo que os conduz ao fim que
cada um tem por objetivo, isto é, glórias e riquezas, procedem por
formas diversas: um com cautela, o outro com ímpeto, um com violência,
o outro com astúcia, um com paciência e o outro por forma contrária; e
cada um, por esses diversos meios, pode alcançar o objetivo.


Vê-se, ainda, de dois indivíduos cautos, um alcançar o seu objetivo, o
outro não, e da mesma maneira, dois deles alcançarem igualmente fim
feliz com duas tendências diversas, sendo, por exemplo, um cauteloso e
o outro impetuoso; isso resulta apenas da natureza dos tempos que se
adaptam ou não ao proceder dos mesmos. Daí decorre aquilo que eu
disse, isto é, que dois indivíduos agindo por formas diversas podem
alcançar o mesmo efeito, ao passo que de dois que operem igualmente,
um alcança o seu fim e o outro não.


Disto depende, ainda, a variação do conceito de bem, porque, se alguém
se orienta com prudência e paciência e os tempos e as situações se
apresentam de modo a que a sua orientação seja boa, ele alcança a
felicidade; mas, se os tempos e as circunstâncias se modificam, ele se
arruina, visto não ter mudado seu modo de proceder. Nem é possível
encontrar homem tão prudente que saiba acomodar-se a isso, seja porque
não pode se desviar daquilo a que a natureza o inclina, seja ainda
porque, tendo alguém prosperado seguindo sempre por um caminho, não se
consegue persuadi-lo de abandoná-lo. Por isso, o homem cauteloso,
quando é tempo de passar para o ímpeto, não sabe fazê-lo e, em
conseqüência, cai em ruína, dado que se mudasse de natureza de acordo
com os tempos e com as coisas, a sua fortuna não se modificaria.


O Papa Júlio II, em todas as suas coisas procedeu impetuosamente e
encontrou tanto os tempos como as circunstâncias coincidentes com
aquele seu modo de proceder, pelo que sempre alcançou feliz êxito.
Considerai a primeira campanha que encetou contra Bolonha, sendo ainda
vivo messer Giovanni Bentivoglio. Os venezianos estavam descontentes;
o rei da Espanha, nas mesmas condições; com a França ainda discutia
tal empresa. Isso não obstante, com ferocidade e ímpeto, deu início
pessoalmente àquela expedição que, uma vez iniciada, fez com que
ficassem suspensos e parados tanto a Espanha como os venezianos, estes
por medo, aquela pelo desejo de recuperar todo o reino de Nápoles, de
outra parte, arrastou consigo o rei de França porque, vendo-o esse rei
em campanha e desejando torná-lo seu amigo para aviltar os venezianos,
julgou não poder negar-lhe a sua gente sem injuriá-lo por forma
manifesta.


Realizou Júlio, portanto, com seu movimento impetuoso, aquilo que
jamais outro pontífice, com toda a humana prudência, teria feito, pois
se ele, para partir de Roma, tivesse esperado estar com todos os
planos estabelecidos e todas as coisas assentadas, como qualquer outro
Papa teria feito, nunca teria obtido êxito, eis que o rei de França
teria apresentado mil desculpas e os outros lhe teriam incutido mil
receios. Desejo omitir as outras suas ações, todas semelhantes e todas
com feliz êxito, sendo que a brevidade da vida não o deixou
experimentar o contrário, dado que se tivessem sobrevindo tempos em
que se tornasse necessário agir com cautelas, surgiria a sua ruína,
pois jamais ele teria desviado daquele modo de proceder a que a
natureza o inclinava.


Concluo, pois, que variando a sorte e permanecendo os homens
obstinados nos seus modos de agir, serão felizes enquanto aquela e
estes sejam concordes e infelizes quando surgir a discordância.
Considero seja melhor ser impetuoso do que dotado de cautela, porque a
fortuna é mulher e consequentemente se torna necessário, querendo
dominá-la, bater-lhe e contrariá-la; e ela mais se deixa vencer por
estes do que por aqueles que procedem friamente. A sorte, porém, como
mulher, sempre é amiga dos jovens, porque são menos cautelosos, mais
afoitos e com maior audácia a dominam.

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