sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO IX

CAPÍTULO IX
DO PRINCIPADO CIVIL
(DE PRINCIPATU CIVILI)


Mas passando a outra parte, quando um cidadão privado, não por
perfídia ou outra intolerável violência, porém com o favor de seus
concidadãos, torna-se príncipe de sua pátria, o que se pode chamar
principado civil (para tal se tornar, não é necessária muita virtude
ou muita fortuna, mas antes uma astúcia afortunada) digo que se
ascende a esse principado ou com o favor do povo ou com aquele dos
grandes. Porque em toda cidade se encontram estas duas tendências
diversas e isso resulta do fato de que o povo não quer ser mandado nem
oprimido pelos poderosos e estes desejam governar e oprimir o povo: é
destes dois anseios diversos que nasce nas cidades um dos três
efeitos: ou principado, ou liberdade, ou desordem.


O principado é constituído ou pelo povo ou pelos grandes, conforme uma
ou outra destas partes tenha oportunidade: vendo os grandes não lhes
ser possível resistir ao povo, começam a emprestar prestígio a um
dentre eles e o fazem príncipe para poderem, sob sua sombra, dar
expansão ao seu apetite; o povo, também, vendo não poder resistir aos
poderosos, volta a estima a um cidadão e o faz príncipe para estar
defendido com a autoridade do mesmo. O que chega ao principado com a
ajuda dos grandes se mantém com mais dificuldade daquele que ascende
ao posto com o apoio do povo, pois se encontra príncipe com muitos ao
redor a lhe parecerem seus iguais e, por isso, não pode nem governar
nem manobrar como entender.


Mas aquele que chega ao principado com o favor popular, aí se encontra
só e ao seu derredor não tem ninguém ou são pouquíssimos que não
estejam preparados para obedecer. Além disso, sem injúria aos outros,
não se pode honestamente satisfazer os grandes, mas sim pode-se fazer
bem ao povo, eis que o objetivo deste é mais honesto daquele dos
poderosos, querendo estes oprimir enquanto aquele apenas quer não ser
oprimido. Contra a inimizade do povo um príncipe jamais pode estar
garantido, por serem muitos; dos grandes, porém, pode se assegurar
porque são poucos. O pior que pode um príncipe esperar do povo hostil
é ser por ele abandonado; mas dos poderosos inimigos não só deve temer
ser abandonado, como também deve recear que os mesmos se lhe voltem
contra, pois que, havendo neles mais visão e maior astúcia, contam
sempre com tempo para salvar-se e procuram adquirir prestígio junto
àquele que esperam venha a vencer. Ainda, o príncipe tem de viver,
necessariamente, sempre com o mesmo povo, ao passo que pode bem viver
sem aqueles mesmos poderosos, uma vez que pode fazer e desfazer a cada
dia esse seu poderio, dando-lhes ou tirando-lhes reputação, a seu
alvedrio.


E, para melhor esclarecer esta parte, digo que os grandes devem ser
considerados em dois grupos principais: ou procedem por forma a se
obrigarem totalmente à tua fortuna, ou não. Os que se obrigam e não
são rapaces, devem ser considerados e amados. Os que não se obrigam
devem ser encarados de dois modos: se fazem isso por pusilanimidade ou
por natural defeito de espírito, deverás servir-te deles, máxime que
são bons conselheiros, porque na prosperidade isso te honrará e na
adversidade não precisarás temê-los. Mas quando eles, ardilosamente,
não se obrigam por ambição, é sinal que pensam mais em si próprios do
que em ti: desses deve o príncipe guardar-se temendo-os como se fossem
inimigos declarados, porque sempre, na adversidade, ajudarão a arruiná-
lo.


Deve, pois, alguém que se torne príncipe mediante o favor do povo,
conservá-lo amigo, o que se lhe torna fácil, uma vez que não pede ele
senão não ser oprimido. Mas quem se torne príncipe pelo favor dos
grandes, contra o povo, deve antes de mais nada procurar ganhar este
para si, o que se lhe torna fácil quando assume a proteção do mesmo.
E, por que os homens, quando recebem o bem de quem esperavam somente o
mal, se obrigam mais ao seu benfeitor, torna-se o povo desde logo mais
seu amigo do que se tivesse sido por ele levado ao principado. O
príncipe pode ganhar o povo por muitas maneiras que, por variarem de
acordo com as circunstâncias, delas não se pode estabelecer regra
certa, razão pela qual das mesmas não cogitaremos.


Concluirei apenas que a um príncipe é necessário ter o povo como
amigo, pois, de outro modo, não terá possibilidades na adversidade.
Nabis, príncipe dos espartanos, suportou o assédio de toda a Grécia e
de um exército romano coberto de vitórias, contra eles defendendo sua
pátria e seu Estado; bastou-lhe apenas, sobrevindo o perigo, garantir-
se contra poucos, o que não seria suficiente se tivesse o povo como
inimigo. E não surja alguém para refutar esta minha opinião com aquele
provérbio bastante conhecido de que, quem se apoia no povo firma-se na
lama, porque o mesmo é verdadeiro somente quando um cidadão privado
estabelece bases sobre o povo e imagina que o mesmo vá libertá-lo
quando oprimido pelos inimigos ou pelos magistrados; neste caso seria
possível sentir-se freqüentemente enganado, como os Gracos em Roma e
Messer Giórgio Scali em Florença. Mas sendo um príncipe quem se apoie
no povo, que possa mandar e seja um homem de coragem, que não esmoreça
nas adversidades, não careça de armas e mantenha com seu valor e suas
determinações alentado o povo todo, jamais se sentirá por ele enganado
e constatará ter estabelecido bons fundamentos.


Amiúde esses principados periclitam quando estão para passar da ordem
civil para um governo absoluto, porque esses príncipes ou governam por
si mesmos ou por intermédio dos magistrados. Neste último caso a
situação dos mesmos é mais fraca e perigosa, porque dependem
completamente da vontade dos cidadãos prepostos à magistratura, os
quais, principalmente nos tempos adversos, podem tomar-lhes o Estado
com grande facilidade, ou contrariando suas ordens ou não lhes
prestando obediência. E o príncipe não pode, nas ocasiões de perigo,
assumir em tempo a autoridade absoluta, porque os cidadãos e os
súditos, acostumados a receber as ordens dos magistrados, não estão,
naquelas conjunturas, para obedecer às suas determinações, havendo
sempre, ainda, nos tempos duvidosos, carência de pessoas nas quais ele
possa confiar. Tal príncipe não pode fundar-se naquilo que observa nas
épocas de paz, quando os cidadãos precisam do Estado, porque então
todos correm, todos prometem e cada um quer morrer por ele enquanto a
morte está longe; mas na adversidade, no momento em que o Estado tem
necessidade dos cidadãos, então poucos são encontrados. E tanto mais é
perigosa esta experiência, quanto não se a pode fazer senão uma vez.
Contudo, um príncipe hábil deve pensar na maneira pela qual possa
fazer com que os seus cidadãos sempre e em qualquer circunstância
tenham necessidade do Estado e dele mesmo, e estes, então, sempre lhe
serão fiéis.

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