sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO XVII

CAPÍTULO XVII
DA CRUELDADE E DA PIEDADE; SE É MELHOR SER AMADO QUE TEMIDO, OU ANTES
TEMIDO QUE AMADO
(DE CRUDELITATE ET PIETATE; ET AN SIT MELIUS AMARI QUAM TIMERI, VEL E
CONTRA)


Reportando-me às outras qualidades já referidas, digo que cada
príncipe deve desejar ser tido como piedoso e não como cruel: não
obstante isso, deve ter o cuidado de não usar mal essa piedade. César
Bórgia era considerado cruel; entretanto, essa sua crueldade tinha
recuperado a Romanha, logrando uní-la e pô-la em paz e em lealdade. O
que, se bem considerado for, mostrará ter sido ele muito mais piedoso
do que o povo florentino, o qual, para fugir à pecha de cruel, deixou
que Pistóia fosse destruída. Um príncipe não deve, pois, temer a má
fama de cruel, desde que por ela mantenha seus súditos unidos e leais,
pois que, com mui poucos exemplos, ele será mais piedoso do que
aqueles que, por excessiva piedade, deixam acontecer as desordens das
quais resultam assassínios ou rapinagens: porque estes costumam
prejudicar a comunidade inteira, enquanto aquelas execuções que emanam
do príncipe atingem apenas um indivíduo. E, dentre todos os príncipes,
é ao novo que se torna impossível fugir à pecha de cruel, visto serem
os Estados novos cheios de perigos. Diz Virgílio, pela boca de Dido:


Res dura,et regni novitas me talia cogunt
moliri, et late fines custode tueri.


O príncipe, contudo, deve ser lento no crer e no agir, não se alarmar
por si mesmo e proceder por forma equilibrada, com prudência e
humanidade, buscando evitar que a excessiva confiança o torne incauto
e a demasiada desconfiança o faça intolerável.


Nasce daí uma questão: se é melhor ser amado que temido ou o
contrário. A resposta é de que seria necessário ser uma coisa e outra;
mas, como é difícil reuni-las, em tendo que faltar uma das duas é
muito mais seguro ser temido do que amado. Isso porque dos homens pode-
se dizer, geralmente, que são ingratos, volúveis, simuladores,
tementes do perigo, ambiciosos de ganho; e, enquanto lhes fizeres bem,
são todos teus, oferecem-te o próprio sangue, os bens, a vida, os
filhos, desde que, como se disse acima, a necessidade esteja longe de
ti; quando esta se avizinha, porém, revoltam-se. E o príncipe que
confiou inteiramente em suas palavras, encontrando-se destituído de
outros meios de defesa, está perdido: as amizades que se adquirem por
dinheiro, e não pela grandeza e nobreza de alma, são compradas mas com
elas não se pode contar e, no momento oportuno, não se torna possível
utilizá-las. E os homens têm menos escrúpulo em ofender a alguém que
se faça amar do que a quem se faça temer, posto que a amizade é
mantida por um vínculo de obrigação que, por serem os homens maus, é
quebrado em cada oportunidade que a eles convenha; mas o temor é
mantido pelo receio de castigo que jamais se abandona.


Deve o príncipe, não obstante, fazer-se temer de forma que, se não
conquistar o amor, fuja ao ódio, mesmo porque podem muito bem
coexistir o ser temido e o não ser odiado: isso conseguirá sempre que
se abstenha de tomar os bens e as mulheres de seus cidadãos e de seus
súditos e, em se lhe tornando necessário derramar o sangue de alguém,
faça-o quando existir conveniente justificativa e causa manifesta.
Deve, sobretudo, abster-se dos bens alheios, posto que os homens
esquecem mais rapidamente a morte do pai do que a perda do patrimônio.
Além disso, nunca faltam motivos para justificar as expropriações, e
aquele que começa a viver de rapinagem sempre encontra razões para
apossar-se dos bens alheios, ao passo que as razões para o
derramamento de sangue são mais raras e esgotam-se mais depressa.


Mas quando o príncipe está à frente de seus exércitos e tem sob seu
comando uma multidão de soldados, então é de todo necessário não se
importar com a fama de cruel, eis que, sem ela, jamais se conservará
exército unido e disposto a alguma empresa. Dentre as admiráveis ações
de Aníbal, menciona-se esta: tendo um exército imenso, constituído de
homens de inúmeras raças, conduzido a batalhar em terras alheias,
nunca surgiu qualquer dissensão entre eles ou contra o príncipe, tanto
na má como na boa fortuna. Isso não pode resultar de outra coisa senão
daquela sua desumana crueldade que, aliada às suas infinitas virtudes,
o tornou sempre venerado e terrível no conceito de seus soldados; sem
aquela crueldade, as virtudes não lhe teriam bastado para surtir tal
efeito e, todavia, escritores nisto pouco ponderados, admiram, de um
lado, essa sua atuação e, de outro, condenam a principal causa da
mesma.


Para prova de que, realmente, as outras suas virtudes não seriam
bastantes, pode-se considerar o caso de Cipião, homem dos mais
notáveis não somente nos seus tempos mas também na memória de todos os
fatos conhecidos, cujos exércitos se revoltaram na Espanha em
conseqüência de sua excessiva piedade, pois que havia concedido aos
seus soldados mais liberdades do que convinha à disciplina militar.
Tal fato foi-lhe censurado no Senado por Fábio Máximo, o qual chamou-o
de corruptor da milícia romana. Os locrenses, tendo sido arruinados e
abatidos por um legado de Cipião, não foram por ele vingados, nem a
insolência daquele legado foi reprimida, resultando tudo isso de sua
natureza fácil; tanto assim que, querendo alguém desculpá-lo perante o
Senado, disse haver muitos homens que melhor sabiam não errar do que
corrigir os erros. Essa sua natureza teria com o tempo sacrificado a
fama e a glória de Cipião, tivesse ele perseverado no comando; mas,
vivendo sob o governo do Senado, esta sua prejudicial qualidade não só
desapareceu, como lhe resultou em glória.


Concluo, pois, voltando à questão de ser temido e amado, que um
príncipe sábio, amando os homens como a eles agrada e sendo por eles
temido como deseja, deve apoiar-se naquilo que é seu e não no que é
dos outros; deve apenas empenhar-se em fugir ao ódio, como foi dito.

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