sábado, 24 de novembro de 2007

CARTA DE MACHIAVELLI A FRANCESCO VETTORI, EM ROMA

CARTA DE MACHIAVELLI A FRANCESCO VETTORI, EM ROMA
(RELATIVA À OBRA IL PRÍNCIPE)


Magnifico oratori Florentino Francisco Vectori apud Summum Pontificem
et benefactori suo.


Romae,


Magnífico embaixador. Tardias jamais foram as graças divinas. Digo
isto porque me parecia não ter perdido mas sim estar esmaecida a vossa
graça, tendo estado vós muito tempo sem escrever-me; estava em dúvida
de onde pudesse vir a razão de tal. E dava pouca importância a todas
as causas que vinham à minha mente, salvo quando pensava que tivésseis
retraído de escrever-me, porque vos tivesse sido escrito que eu não
fosse bom guardião de vossas cartas; e eu sabia que, afora Filippo e
Pagolo, outros, de minha parte, não as tinham visto. Readquiri essa
graça pela vossa última de 23 do mês passado, pelo que fico
contentíssimo ao ver quão ordenada e calmamente exerceis essa função
pública, e eu vos concito a continuar assim, porque quem deixa as suas
comodidades pelas comodidades dos outros, perde as suas e destes não
recebe gratidão. Desde que a fortuna quer dispor todas as coisas, é
preciso deixá-la fazer, ficar quieto e não lhe criar embaraço,
esperando que o tempo lhe permita fazer alguma coisa pelos homens;
então, será bem suportardes maiores fadigas, zelar melhor das coisas,
e a mim convirá partir da vilas e dizer: eis-me aqui. Não posso,
portanto, desejando render-vos iguais graças, dizer nesta minha carta
outra coisa que não aquilo que seja a minha vida, e se julgardes tal
que valha trocá-la com a vossa, ficarei contente em mudá-la.


Aqui estou, na vila; depois que ocorreram aqueles meus últimos casos,
não estive, somando todos, vinte dias em Florença. Até aqui tenho
apanhado tordos à mão. Levantava-me antes do amanhecer, preparava a
armadilha, ia-me além com um feixe de gaiolas ao ombro, que até
parecia o Getas quando o mesmo voltava do porto com os livros de
Anfitrião; apanhava no mínimo dois e no máximo seis tordos. E, assim,
passei todo o mês de setembro. Depois esse passatempo, ainda que
desprezível e estranho, veio a faltar com desgosto meu. Dir-vos-ei
qual a minha vida agora. Levanto-me de manhã com o sol e vou a um meu
bosque que mandei cortar, onde fico duas horas a examinar o trabalho
do dia anterior e a passar o tempo com aqueles cortadores que estão
sempre às voltas com algum aborrecimento entre si ou com os vizinhos.
Acerca deste bosque eu teria a dizer-vos mil belas coisas que me
aconteceram, bem como de Frosino de Panzano e dos outros que queriam
desta lenha. Frosino, principalmente, mandou buscar certa quantidade
sem dizer-me nada e, na ocasião do pagamento, queria reter dez liras
que disse ter ganho de mim, há quatro anos, num jogo de cricca em casa
de Antônio Guicciardini. Comecei a fazer o diabo: queria acusar o
carroceiro, que fora ali mandado por ele, como ladrão. Enfim Giovanni
Machiaveili interveio e nos pôs de acordo. Batista Guicciardini,
Filippo Ginori, Tommaso dei Bene e alguns outros cidadãos, quando
aqueles maus ventos sopravam, cada um me adquiriu uma ruma de lenha.
Prometi a todos e mandei uma a Tommaso, a qual chegou a Florença pela
metade, porque, para empilhá-la, ali estavam ele, a mulher, as criadas
e os filhos, os quais pareciam o Gabburra quando na quinta-feira, com
seus rapazes, abate um boi. De modo que, visto em quem eu depositava o
meu ganho, disse aos outros que não tinha mais lenha; todos se
encolerizaram e agastaram comigo, especialmente Batista, que inclui
esta entre as demais desgraças de Prato.


Saindo do bosque, vou a uma fonte e, daqui, ao meu viveiro de tordos.
Levo um livro comigo, ou Dante ou Petrarca, ou um desses poetas
menores, Tíbulo, Ovidio e semelhantes; leio aquelas suas amorosas
paixões, e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum
tempo nestes pensamentos. Depois, vou pela estrada até à hospedaria;
falo com os que passam, pergunto notícias das suas cidades, ouço
muitas coisas e noto vários gostos e fantasias dos homens. Enquanto
isso, chega a hora do almoço, quando com a minha família como aqueles
alimentos que esta pobre vila e este pequeno patrimônio comportam.
Terminado o almoço, retorno à hospedaria; aqui, geralmente, estão o
estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros. Com estes eu
me rebaixo o dia todo jogando cricca, trichtach, e, depois, daí nas
cem mil contendas e infinitos acintes com palavras injuriosas; a
maioria das vezes se disputa uma insignificância e, contudo, somos
ouvidos gritar por São Casciano. Assim, envolvido entre estes piolhos,
cubro o cérebro de bolor e desabafo a malignidade de minha sorte,
ficando contente se me encontrásseis nesta estrada para ver se essa
malignidade se envergonha.


Chegada a noite, retorno para casa e entro no meu escritório; na
porta, dispo a roupa quotidiana, cheia de barro e lodo, visto roupas
dignas de rei e da corte e, vestido assim condignamente, penetro nas
antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido
amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o
qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes
das razões de suas ações. Eles por sua humanidade, me respondem, e eu
não sinto durante quatro horas qualquer tédio, esqueço todas as
aflições, não temo a pobreza, não me amedronta a morte: eu me integro
inteiramente neles. E, porque Dante disse não haver ciência sem que
seja retido o que foi apreendido, eu anotei aquilo de que, por sua
conversação, fiz capital, e compus um opúsculo De Principatibus, onde
me aprofundo o quanto posso nas cogitações deste assunto, discutindo o
que é principado, de que espécies são, como são adquiridos, como se
mantêm, porque são perdidos. Se alguma vez vos agradou alguma fantasia
minha, esta não vos deveria desagradar; e um príncipe, principalmente
um príncipe novo, deveria aceitar esse trabalho: por isso eu o dedico
à magnificência de Juliano. Filippo Casavecchia o viu e vos poderá
relatar mais ou menos como é e das conversas que tive com ele, se bem
que freqüentemente eu aumente e corrija o texto.


Vós desejaríeis, magnífico embaixador, que eu deixasse esta vida e
fosse gozar convosco a vossa. Eu o farei de qualquer maneira; mas o
que me retém por ora são certos negócios que dentro de seis semanas
terei ultimado. O que me deixa ficar em dúvida é que estão ai aqueles
Soderini, aos quais eu seria forçado, estando aí, a visitar e a falar.
Receio que ao meu retorno, pensando apear em casa, viesse a desmontar
no Bargiello, eis que, se bem este Estado" tenha mui sólidas bases e
grande segurança, ele é novo e, por isso, cheio de suspeitas; nem
faltam sabidos que, para aparecer, como Pagolo Bertini, meteriam
outros na prisão e deixariam a meu cargo os aborrecimentos. Peço-vos
me tranqüilizeis deste receio e, depois, dentro do tempo mencionado,
irei visitar-vos de qualquer modo.


Discuti com Filippo sobre esse meu opúsculo, se convinha dá-lo ou não
e, sendo acertado dá-lo, se era mais conveniente que eu o levasse ou
que o mandasse. Não me fazia dá-lo o receio de que Juliano não o lesse
e que esse Ardinghelli se honrasse com esse meu último trabalho. Por
outro lado, dá-lo satisfaria a necessidade que me oprime, porque estou
em ruína e não posso permanecer assim por muito tempo, sem que me
torne desprezível por pobreza, isso além do desejo que teria de que
esses senhores Medici passassem a utilizar-me, se tivesse de começar a
fazer-me rolar uma pedra; porque, se depois não conseguisse ganhar o
seu favor, lamentar-me-ia de mim mesmo, eis que, quando fosse lido o
opúsculo, ver-se-ia que os quinze anos que estive no estudo da arte do
Estado, não os dormi nem brinquei, devendo todo homem achar agradável
servir-se de alguém que, a custas de outros, fosse cheio de
experiência. E da minha fidelidade não se deveria duvidar porque,
tendo sempre observado a lealdade, não devo aprender agora a rompê-la;
quem foi fiel e bom durante quarenta e três anos, que eu os tenho, não
deve poder mudar sua natureza; da minha lealdade e bondade é
testemunho a minha pobreza.


Desejaria, pois, que vós ainda me escrevêsseis aquilo que sobre este
assunto vos pareça. A vós me recomendo. Seja feliz.


10 de Dezembro de 1513
NICOLÓ MACHIAVELLI
Florença.

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