sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO VIII

CAPÍTULO VIII
DOS QUE CHEGARAM AO PRINCIPADO POR MEIO DE CRIMES
(DE HIS QUI PER SCELERA AD PRINCIPATUM PERVENERE)


Mas, porque pode-se tornar príncipe ainda por dois modos que não podem
ser atribuídos totalmente à fortuna ou à virtude, não me parece
acertado pô-los de parte, ainda que de um deles se possa mais
amplamente cogitar em falando das repúblicas. Estes são, ou quando por
qualquer meio criminoso e nefário se ascende ao principado, ou quando
um cidadão privado torna-se príncipe de sua pátria pelo favor de seus
concidadãos. E, falando do primeiro modo, apontarei dois exemplos, um
antigo e outro atual, sem entrar, contudo, no mérito desta parte, pois
penso seja suficiente, a quem de tal necessitar, apenas imitá-los.


Agátocles siciliano, não só de privada mas também de ínfima e abjeta
condição, tornou-se rei de Siracusa. Filho de um oleiro, teve sempre,
no decorrer de sua juventude, vida celerada; todavia, acompanhou seus
atos delituosos de tanto vigor de ânimo e de corpo que, tendo
ingressado na milícia, em razão de atos de maldade, chegou a ser
pretor de Siracusa. Uma vez investido nesse posto, tendo deliberado
tornar-se príncipe e manter pela violência e sem favor dos outros
aquilo que por acordo de todos lhe tinha sido concedido, depois de
acerca desse seu desejo ter estabelecido acordo com Amilcar
cartaginês, que se encontrava em ação com os seus exércitos na
Sicilia, reuniu certa manhã o povo e o senado de Siracusa como se
tivesse de deliberar sobre assuntos pertinentes à República e, a um
sinal combinado, fez que seus soldados matassem todos os senadores e
os mais ricos da cidade; mortos estes, ocupou e manteve o principado
daquela cidade sem qualquer controvérsia civil. E, se bem por duas
vezes os cartagineses tivessem com ele rompido e estabelecido assédio,
não só pode defender a sua cidade como ainda, tendo deixado parte de
sua gente na defesa contra o cerco, com o restante assaltou a África e
em breve tempo libertou Siracusa do sítio levando os cartagineses a
extrema dificuldade: tiveram de com ele estabelecer acordo e contentar-
se com as possessões da África, deixando a Sicília para Agátocles.


Quem considere, pois, as ações e a vida desse príncipe, não encontrará
coisa, ou pouca achará, que possa atribuir à fortuna: suas ações
resultaram, como acima se disse, não do favor de alguém mas de sua
ascensão na milícia, obtida com mil aborrecimentos e perigos, que lhe
permitiu alcançar o principado e, depois, mantê-lo com tantas decisões
corajosas e arriscadas. Não se pode, ainda, chamar virtude o matar os
seus concidadãos, trair os amigos, ser sem fé, sem piedade, sem
religião; tais modos podem fazer conquistar poder, mas não glória.
Ademais, se se considerar a virtude de Agátocles no entrar e no sair
dos perigos e a grandeza de seu ânimo no suportar e superar as
adversidades, não se achará por que deva ser ele julgado inferior a
qualquer dos mais excelentes capitães; contudo, sua exacerbada
crueldade e desumanidade, com infinitas perversidades, não permitem
seja ele celebrado entre os homens mais ilustres. Não se pode, assim,
atribuir à fortuna ou à virtude aquilo que sem uma e outra foi por ele
conseguido.


Nos nossos tempos, reinando Alexandre VI, Oliverotto de Fermo, tendo
anos antes ficado órfão de pai, foi criado por um tio materno de nome
Giovanni Fogliani; nos primeiros anos de sua juventude, foi
encaminhado à vida militar sob o comando de Paulo Vitelli, a fim de
que, tomado daquela disciplina, atingisse algum excelente posto da
milícia. Morto Paulo, militou sob Vitellozzo, irmão daquele, e em
muito pouco tempo, por ser engenhoso, de físico e ânimo fortes, tornou-
se o primeiro homem de sua milícia. Mas, parecendo-lhe coisa servil o
estar sob as ordens de outrem, com a ajuda de alguns cidadãos de
Fermo, aos quais era mais cara a servidão que a liberdade de sua
pátria, e com o favor de Vitellozzo, pensou ocupar Fermo. E escreveu a
Giovanni Fogliani dizendo que, por ter estado muitos anos fora de
casa, desejava ir visitá-lo e à sua cidade e conhecer o seu
patrimônio; e, como não tinha trabalhado senão para conquistar honras,
para que seus concidadãos vissem como não tinha gasto o tempo em vão,
queria chegar com pompa e acompanhado de cem cavalos de amigos e
servidores seus; pedia-lhe, pois, se servisse ordenar fosse ele
recebido pelos cidadãos de Fermo com todas as honras, o que não
somente o dignificaria, mas também a Fogliani, dado haver sido seu
discípulo.


Não deixou Giovanni de despender esforços em favor de seu sobrinho:
tendo feito com que os moradores de Fermo o recebessem com honrarias,
alojou-o em suas casas. Aí, passados alguns dias e pronto para ordenar
secretamente aquilo que era necessário à sua futura perfídia,
Oliverotto promoveu soleníssimo banquete para o qual convidou Giovanni
Fogliani e todos os principais homens de Fermo. Consumadas que foram
as iguarias e após todos os demais entretenimentos usuais em
semelhantes ocasiões, Oliverotto, com habilidade, abordou certos
assuntos graves, falando da grandeza do Papa Alexandre, de seu filho
César e dos empreendimentos dos mesmos. Tendo Giovanni e os demais
respondido a tais considerações, ele, repentinamente, ergueu-se
dizendo ser aquilo assunto para falar-se em lugar mais secreto,
retirando-se para um cômodo onde Giovanni e todos os outros foram ter
com ele. Nem ainda tinham se assentado, de lugares ocultos saíram
soldados que mataram Giovanni e a todos os demais.


Depois desse homicídio, Oliverotto montou a cavalo, correu a cidade
acompanhado de seus homens e assediou em seu palácio o supremo
magistrado; em conseqüência, por medo, foram obrigados a obedecê-lo e
formar um governo do qual ele se fez príncipe. E, mortos todos aqueles
que, por descontentes, poderiam ofendê-lo, fortaleceu-se com novas
ordens civis e militares de forma que, no período de um ano em que
reteve o principado, não somente esteve forte na cidade de Fermo, como
também se tornou causa de pavor para todas as populações vizinhas.
Teria sido difícil a sua destruição, como difícil foi a de Agátocles,
se não tivesse sido enganado por César Bórgia quando este, em
Sinigalia, como já se disse, aprisionou os Orsíni e os Vitelli. Ai,
preso também ele, foi estrangulado juntamente com Vitellozzo, mestre
de suas virtudes e suas perfídias, um ano após haver cometido o
parricídio.


Poderia alguém ficar em dúvida sobre a razão por que Agátocles e algum
outro a ele semelhante, após tantas traições e crueldades, puderam
viver longamente, sem perigo, dentro de sua pátria e, ainda, defender-
se dos inimigos externos sem que os seus concidadãos contra eles
tivessem conspirado, tanto mais notando-se que muitos outros não
conseguiram manter o Estado, mediante a crueldade, nos tempos
pacíficos e, muito menos, nos duvidosos tempos de guerra. Penso que
isto resulte das crueldades serem mal ou bem usadas. Bem usadas pode-
se dizer serem aquelas (se do mal for lícito falar bem) que se fazem
instantaneamente pela necessidade do firmar-se e, depois, nelas não se
insiste mas sim se as transforma no máximo possível de utilidade para
os súditos; mal usadas são aquelas que, mesmo poucas a princípio, com
o decorrer do tempo aumentam ao invés de se extinguirem. Aqueles que
observam o primeiro modo de agir, podem remediar sua situação com
apoio de Deus e dos homens, como ocorreu com Agátocles; aos outros
torna-se impossível a continuidade no poder.


Por isso é de notar-se que, ao ocupar um Estado, deve o conquistador
exercer todas aquelas ofensas que se lhe tornem necessárias, fazendo-
as todas a um tempo só para não precisar renová-las a cada dia e
poder, assim, dar segurança aos homens e conquistá-los com benefícios,
Quem age diversamente, ou por timidez ou por mau conselho, tem sempre
necessidade de conservar a faca na mão, não podendo nunca confiar em
seus súditos, pois que estes nele também não podem ter confiança
diante das novas e contínuas injúrias. Portanto, as ofensas devem ser
feitas todas de uma só vez, a fim de que, pouco degustadas, ofendam
menos, ao passo que os benefícios devem ser feitos aos poucos, para
que sejam melhor apreciados. Acima de tudo, um príncipe deve viver com
seus súditos de modo que nenhum acidente, bom ou mau, o faça variar:
porque, surgindo pelos tempos adversos a necessidade, não estarás em
tempo de fazer o mal, e o bem que tu fizeres não te será útil eis que,
julgado forçado, não trará gratidão.

Nenhum comentário: