sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO XIV

CAPÍTULO XIV
O QUE COMPETE A UM PRÍNCIPE ACERCA DA MILÍCIA (TROPA)
(QUOD PRINCIPEM DECEAT CIRCA MILITIAM)


Deve, pois, um príncipe não ter outro objetivo nem outro pensamento,
nem tomar qualquer outra coisa por fazer, senão a guerra e a sua
organização e disciplina, pois que é essa a única arte que compete a
quem comanda. E é ela de tanta virtude, que não só mantém aqueles que
nasceram príncipes, como também muitas vezes faz os homens de condição
privada subirem àquele posto; ao contrário, vê-se que, quando os
príncipes pensam mais nas delicadezas do que nas armas, perdem o seu
Estado. A primeira causa que te faz perder o governo é negligenciar
dessa arte, enquanto que a razão que te permite conquistá-lo é o ser
professo da mesma.


Francisco Sforza, por estar armado, de cidadão privado que era, tornou-
se duque de Milão; os filhos, para fugir às fadigas das armas, de
duques passaram a simples cidadãos privados. Em verdade, entre outros
males que te acarreta o estares desarmado, ele te torna vil, o que
constitui uma daquelas infâmias de que o príncipe se deve guardar,
como abaixo será exposto. Realmente, entre um príncipe armado e um
desarmado, não existe proporção alguma, e não é razoável que quem
esteja armado obedeça com gosto ao que seja desprovido de armas, nem
que o desarmado se sinta seguro entre servidores armados, eis que,
existindo desdém de parte de um e suspeita do lado do outro, não é
possível ajam bem, estando juntos. Ainda, um príncipe que não entende
de tropas, além dos outros prejuízos referidos, sofre aquele de não
poder ser estimado pelos seus soldados e nem poder neles confiar.


Deve o príncipe, portanto, não desviar um momento sequer o seu
pensamento do exercício da guerra, o que pode fazer por dois modos: um
com a ação, o outro com a mente, Quanto à ação, além de manter bem
organizadas e exercitadas as suas tropas, deve estar sempre em caçadas
para acostumar o corpo às fadigas e, em parte, para conhecer a
natureza dos lugares e saber como surgem os montes, como embocam os
vales, como se estendem as planícies, e aprender a natureza dos rios e
dos pântanos, pondo muita atenção em tudo isso. Esses conhecimentos
são úteis por duas razões: primeiro, aprende-se a conhecer o próprio
país e pode-se melhor identificar as defesas que ele oferece; depois,
em decorrência do conhecimento e prática daqueles sítios, com
facilidade poderá entender qualquer outra região que venha a ter de
observar, eis que as colinas, os vales, as planícies, os rios e os
pântanos que existem, por exemplo, na Toscana, têm certa semelhança
com os das outras províncias, de forma que, do conhecimento do terreno
de uma província, se pode passar facilmente ao de outras. O príncipe
que seja falto dessa perícia, está desprovido do elemento principal de
que necessita um capitão, pois ela ensina a encontrar o inimigo,
estabelecer os acampamentos, conduzir os exércitos, ordenar as
jornadas, fazer incursões pelas terras com vantagem sobre o inimigo.


Filopémenes, príncipe dos Aqueus, dentre os louvores que lhe foram
endereçados pelos escritores, mereceu também aquele de que, nos tempos
de paz, em outra coisa não pensava senão em torno de guerra e, quando
excursionando pelos campos com os amigos, freqüentemente parava e com
eles argumentava: - Se os inimigos estivessem sobre aquela colina e
nós nos encontrássemos aqui com nosso exército, qual de nós teria
vantagem? Como se poderia atacá-los, mantendo a formação da tropa? Se
quiséssemos nos retirar, como deveríamos proceder? Se eles se
retirassem, como faríamos para persegui-los? - E propunha-lhes,
andando, todos os casos que possam ocorrer em um exército; ouvia a
opinião dos mesmos, dava a sua corroborando-a com argumentos, de
maneira tal que, em razão dessas contínuas cogitações, jamais poderia,
comandando os exércitos, encontrar pela frente algum imprevisto para o
qual não tivesse solução.


Mas, quanto ao exercício da mente, deve o príncipe ler as histórias e
nelas observar as ações dos grandes homens, ver como se conduziram nas
guerras, examinar as causas de suas vitórias e de suas derrotas, para
poder fugir às responsáveis por estas e imitar as causadoras daquelas;
deve fazer, sobretudo, como, em tempos idos, fizeram alguns grandes
homens que imitaram todo aquele que antes deles foi louvado e
glorificado, e sempre tiveram em si os gestos e as ações do mesmo,
como se diz que Alexandre Magno imitava a Aquiles, César a Alexandre,
Cipião a Ciro. Quem lê a vida de Ciro escrita por Xenofonte percebe,
depois, na vida de Cipião, o quanto lhe valeu para a glória aquela
imitação, bem como o quanto na castidade, afabilidade, humanidade e
liberalidade, Cipião se assemelhava àquilo que Xenofonte escreveu de
Ciro. Um príncipe inteligente deve observar essa semelhança de
proceder, nunca ficando ocioso nos tempos de paz, mas sim, com
habilidade, procurar formar cabedal para poder utilizá-lo na
adversidade, a fim de que, quando mudar a fortuna, se encontre
preparado para resistir

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