sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO III

CAPÍTULO III
DOS PRINCIPADOS MISTOS
(DE PRINCIPATIBUS MIXTIS)


Mas é nos principados novos que residem as dificuldades. Em primeiro
lugar, se não é totalmente novo mas sim como membro anexado a um
Estado hereditário (que, em seu conjunto, pode chamar-se "quase
misto"), as suas variações resultam principalmente de uma natural
dificuldade inerente a todos os principados novos: é que os homens,
com satisfação, mudam de senhor pensando melhorar e esta crença faz
com que lancem mão de armas contra o senhor atual, no que se enganam
porque, pela própria experiência, percebem mais tarde ter piorado a
situação. Isso depende de uma outra necessidade natural e ordinária, a
qual faz com que o novo príncipe sempre precise ofender os novos
súditos com seus soldados e com outras infinitas injúrias que se
lançam sobre a recente conquista; dessa forma, tens como inimigos
todos aqueles que ofendeste com a ocupação daquele principado e não
podes manter como amigos os que te puseram ali, por não poderes
satisfazê-los pela forma por que tinham imaginado, nem aplicar-lhes
corretivos violentos uma vez que estás a eles obrigado; porque sempre,
mesmo que fortíssimo em exércitos, tem-se necessidade do apoio dos
habitantes para penetrar numa província. Foi por essas razões que Luís
XII, rei de França, ocupou Milão rapidamente e logo depois o perdeu,
para tanto bastando inicialmente as forças de Ludovico, porque aquelas
populações que lhe haviam aberto as portas, reconhecendo o erro de seu
pensar anterior e descrentes daquele bem-estar futuro que haviam
imaginado, não mais podiam suportar os dissabores ocasionados pelo
novo príncipe.


Ë bem verdade que, reconquistando posteriormente as regiões rebeladas,
mais dificilmente se as perdem, eis que o senhor, em razão da
rebelião, é menos vacilante em assegurar-se da punição daqueles que
lhe faltaram com a lealdade, em investigar os suspeitos e em reparar
os pontos mais fracos. Assim sendo, se para que a França viesse a
perder Milão pela primeira vez foi suficiente um Duque Ludovico que
fizesse motins nos seus limites, já para perdê-lo pela segunda vez foi
preciso que tivesse contra si o mundo todo e que seus exércitos fossem
desbaratados ou expulsos da Itália, o que resultou das razões logo
acima apontadas. Não obstante, tanto na primeira como na segunda vez,
Milão foi-lhe tomado.


As razões gerais da primeira foram expostas; resta agora falar sobre
as da segunda vez e ver de que remédios dispunha a França e de que
meios poderá valer-se quem venha a encontrar-se em circunstâncias
tais, para poder manter-se na posse da conquista melhor do que o fez
esse país.


Digo, consequentemente, que estes Estados conquistados e anexados a um
Estado antigo, ou são da mesma província e da mesma língua, ou não o
são: Quando o sejam, é sumamente fácil mantê-los sujeitos, máxime
quando não estejam habituados a viver em liberdade, e para dominá-los
seguramente será bastante ter-se extinguido a estirpe do príncipe que
os governava, porque nas outras coisas, conservando-se suas velhas
condições e não existindo alteração de costumes, os homens passam a
viver tranqüilamente, como se viu ter ocorrido com a Borgonha, a
Bretanha, a Gasconha e a Normandia que por tanto tempo estiveram com a
França, isto a despeito da relativa diversidade de línguas, mas graças
à semelhança de costumes facilmente se acomodaram entre eles. E quem
conquista, querendo conservá-los, deve adotar duas medidas: a
primeira, fazer com que a linhagem do antigo príncipe seja extinta; a
outra, aquela de não alterar nem as suas leis nem os impostos; por tal
forma, dentro de mui curto lapso de tempo, o território conquistado
passa a constituir um corpo todo com o principado antigo.


Mas, quando se conquistam territórios numa província com língua,
costumes e leis diferentes, aqui surgem as dificuldades e é necessário
haver muito boa sorte e habilidade para mantê-los. E um dos maiores e
mais eficientes remédios seria aquele do conquistador ir habitá-los.
Isto tornaria mais segura e mais duradoura a posse adquirida, como
ocorreu com o Turco da Grécia, que a despeito de ter observado todas
as leis locais, não teria conservado esse território se para aí não
tivesse se transferido. Isso porque, estando no local, pode-se ver
nascerem as desordens e, rapidamente, podem ser elas reprimidas; aí
não estando, delas somente se tem notícia quando já alastradas e não
mais passíveis de solução. Além disso, a província conquistada não é
saqueada pelos lugar-tenentes; os súditos ficam satisfeitos porque o
recurso ao príncipe se torna mais fácil, donde têm mais razões para
amá-lo, querendo ser bons, e para temê-lo, caso queiram agir por forma
diversa. Quem do exterior desejar assaltar aquele Estado, por ele terá
maior respeito; donde, habitando-o, o príncipe somente com muita
dificuldade poderá vir a perdê-lo.


Outro remédio eficaz é instalar colônias num ou dois pontos, que sejam
como grilhões postos àquele Estado, eis que é necessário ou fazer tal
ou aí manter muita tropa. Com as colônias não se despende muito e, sem
grande custo, podem ser instaladas e mantidas, sendo que sua criação
prejudica somente àqueles de quem se tomam os campos e as casas para
cedê-los aos novos habitantes, os quais constituem uma parcela mínima
do Estado conquistado. Ainda, os assim prejudicados, ficando dispersos
e pobres, não podem causar dano algum, enquanto que os não lesados
ficam à parte, amedrontados, devendo aquietar-se ao pensamento de que
não poderão errar para que a eles não ocorra o mesmo que aconteceu
àqueles que foram espoliados. Concluo dizendo que estas colônias não
são onerosas, são mais fiéis, ofendem menos e os prejudicados não
podem causar mal, tornados pobres e dispersos como já foi dito. Por
onde se depreende que os homens devem ser acarinhados ou eliminados,
pois se se vingam das pequenas ofensas, das graves não podem fazê-lo;
daí decorre que a ofensa que se faz ao homem deve ser tal que não se
possa temer vingança. Mas mantendo, em lugar de colônias, forças
militares, gasta-se muito mais, absorvida toda a arrecadação daquele
Estado na guarda aí destacada; dessa forma, a conquista transforma-se
em perda e ofende muito mais por que danifica todo aquele país com as
mudanças do alojamento do exército, incômodo esse que todos sentem e
que transforma cada habitante em inimigo: e são inimigos que podem
causar dano ao conquistador, pois, vencidos, ficam em sua própria
casa. Sob qualquer ponto de vista essa guarda armada é inútil, ao
passo que a criação de colônias é útil.


Deve, ainda, quem se encontre à frente de uma província diferente,
como foi dito, tornar-se chefe e defensor dos menos fortes, tratando
de enfraquecer os poderosos e cuidando que em hipótese alguma aí
penetre um forasteiro tão forte quanto ele. E sempre surgirá quem seja
chamado por aqueles que na província se sintam descontentes, seja por
excessiva ambição, seja por medo, como viu-se terem os etólios
introduzido na Grécia os romanos que, aliás, em todas as outras
províncias que conquistaram, fizeram-no auxiliados pelos respectivos
habitantes. E a ordem das coisas é que, tão logo um estrangeiro
poderoso penetre numa província, todos aqueles que nela são mais
fracos a ele dêem adesão, movidos pela inveja contra quem se tornou
poderoso sobre eles; tanto assim é que em relação a estes não se torna
necessário grande trabalho para obter seu apoio, pois logo todos eles,
voluntariamente, formam bloco com o seu Estado conquistado. Apenas
deve haver o cuidado de não permitir adquiram eles muito poder e muita
autoridade, podendo o conquistador, facilmente, com suas forças e com
o apoio dos mesmos, abater aqueles que ainda estejam fortes, para
tornar-se senhor absoluto daquela província. E quem não encaminhar
satisfatoriamente esta parte, cedo perderá a sua conquista e, enquanto
puder conservá-la, terá infinitos aborrecimentos e dificuldades.


Os romanos, nas províncias de que se assenhorearam, observaram bem
estes pontos: fundaram colônias, conquistaram a amizade dos menos
prestigiosos, sem lhes aumentar o poder, abateram os mais fortes e não
deixaram que os estrangeiros poderosos adquirissem conceito. Quero
tomar como exemplo apenas a província da Grécia. Os aqueus e os
etólios tornaram-se amigos dos romanos; foi abatido o reino dos
macedônios e daí foi expulso Antíoco; mas nem os méritos dos aqueus e
dos etólios lhes asseguraram permissão para conquistar algum Estado,
nem a persuasão de Felipe logrou fazer com que os romanos se tornassem
seus amigos e não o diminuíssem, nem o poder de Antíoco conseguiu
fazer com que os mesmos o autorizassem a manter seu domínio naquela
província. Isso tudo ocorreu porque os romanos fizeram nesses casos
aquilo que todo príncipe inteligente deve fazer: não somente vigiar e
ter cuidado com as desordens presentes, como também com as futuras,
evitando-as com toda a cautela porque, previstas a tempo, facilmente
se lhes pode opor corretivo; mas, esperando que se avizinhem, o
remédio não chega a tempo, e o mal já então se tornou incurável.
Ocorre aqui como no caso do tuberculoso, segundo os médicos: no
princípio é fácil a cura e difícil o diagnóstico, mas com o decorrer
do tempo, se a enfermidade não foi conhecida nem tratada, torna-se
fácil o diagnóstico e difícil a cura. Assim também ocorre nos assuntos
do Estado porque, conhecendo com antecedência os males que o atingem
(o que não é dado senão a um homem prudente), a cura é rápida; mas
quando, por não se os ter conhecido logo, vêm eles a crescer de modo a
se tornarem do conhecimento de todos, não mais existe remédio.


Contudo, os romanos, prevendo as perturbações, sempre as tolheram e
jamais, para fugir à guerra, permitiram que as mesmas seguissem seu
curso, pois sabiam que a guerra não se evita mas apenas se adia em
benefício dos outros; por isso mesmo, promoveram a guerra contra
Felipe e Antíoco na Grécia, para evitar terem de fazê-la na Itália e,
no entanto, podiam ter evitado a luta naquele momento, se o quisessem.
Nem em momento algum lhes agradou aquilo que todos os dias está nos
lábios dos entendidos de nosso tempo, o desejo de gozar do benefício
da contemporização, mas sim apenas aquilo que resultava de sua própria
virtude e prudência: na verdade o tempo lança à frente todas as coisas
e pode transformar o bem em mal e o mal em bem.


Mas voltemos à França e examinemos se ela fez alguma das coisas que
expomos, falando eu de Luís e não de Carlos porque foi daquele que,
por ter mantido mais prolongado domínio na Itália, melhor se viram os
progressos: e vereis como ele fez o contrário que se deve fazer para
conservar um Estado numa província diferente.


O Rei Luís foi conduzido à Itália pela ambição dos venezianos que, por
tal meio, quiseram ganhar o Estado da Lombardia, Não desejo censurar o
partido tomado pelo rei; porque, querendo começar a pôr um pé na
Itália e não tendo amigos nesta província, sendo-lhe, ao contrário,
fechadas todas as portas em razão do comportamento do Rei Carlos, foi
obrigado a servir-se daquelas amizades com que podia contar: e ter-lhe-
ia resultado bem escolhido esse partido, se nos outros manejos não
tivesse cometido erro algum. Conquistada, pois, a Lombardia, o rei
readquiriu prontamente aquela reputação que Carlos perdera: Gênova
cedeu; os florentinos tornaram-se seus amigos; o marquês de Mantua, o
duque de Ferrara, Bentivoglio, a senhora de Forli, o senhor de Faenza,
de Pesaro, de Rimini, de Camerino, de Piombino, os Luqueses, os
Pisanos e os Sieneses, todos foram ao seu encontro para tornarem-se
seus amigos. Os venezianos puderam considerar então a temeridade da
resolução que haviam adotado, pois que, para conquistar dois tratos de
terra na Lombardia, fizeram o rei tornar-se senhor de dois terços da
Itália.


Considere-se agora com quanta facilidade podia o rei manter a sua
reputação na Itália se, observadas as normas já referidas, tivesse
conservado seguros e defendidos todos aqueles seus amigos que, por
serem em grande número, fracos e medrosos uns em relação à Igreja os
outros face aos venezianos, precisavam sempre estar com ele; por meio
deles poderia, facilmente, ter-se assegurado contra os que ainda se
conservavam fortes.


Mas ele, apenas chegado a Milão, fez o contrário, dando auxilio ao
papa Alexandre para que ocupasse a Romanha. Nem percebeu que com essa
deliberação enfraquecia a si próprio, afastando os amigos e aqueles
que se lhe tinham lançado aos braços, enquanto engrandecia a Igreja
acrescentando ao poder espiritual, que lhe dá tanta autoridade,
tamanha força temporal. Cometido um primeiro erro, foi compelido a
seguir praticando outros até que, para pôr fim à ambição de Alexandre
e evitar que este se tornasse senhor da Toscana, teve de vir
pessoalmente à Itália. Não lhe bastou ter tornado grande a Igreja e
perder os amigos; por querer o reino de Nápoles, dividiu-o com o rei
da Espanha; sendo primeiro o árbitro da Itália, aí colocou um
companheiro para que os ambiciosos daquela província e os descontentes
com ele mesmo tivessem onde recorrer e, em vez de deixar naquele reino
um soberano a ele sujeito, tirou-o para, em seu lugar, colocar um
outro que pudesse expulsá-lo dali.


É coisa muito natural e comum o desejo de conquistar e, sempre, quando
os homens podem fazê-lo, serão louvados ou, pelo menos, não serão
censurados; mas quando não têm possibilidade e querem fazê-lo de
qualquer maneira, aqui está o erro e, consequentemente, a censura. Se
a França, pois, podia assaltar Nápoles com suas forças, devia fazê-lo;
se não podia, não devia dividir esse reino. E se a divisão que fez com
os venezianas sobre a Lombardia mereceu desculpa por ter com ela
firmado pé na Itália, aquela merece censura em razão de não ser
justificada por essa necessidade.


Tinha, pois, Luís, cometido estes cinco erros: eliminou os menos
fortes; aumentou na Itália o prestígio de um poderoso; aí colocou um
estrangeiro poderosíssimo; não veio habitar no país; não instalou
colônias.


Estes erros, contudo, poderiam não ter causado dano enquanto vivo ele
fosse, se não houvesse sido cometido o sexto erro, tomar os
territórios aos venezianos. Na verdade, se não tivesse tornado grande
a Igreja nem introduzido a Espanha na Itália, seria bem razoável e
necessário enfraquecê-los; mas, tomados que foram aqueles partidos,
nunca deveriam consentir na ruína dos mesmos, pois, sendo poderosos,
teriam sempre mantido aquelas à distância da Lombardia, e isso porque
os venezianos jamais iriam consentir em qualquer manobra contra esse
Estado, a menos que eles se tornassem os senhores, da mesma forma que
os outros não iriam querer tomá-lo à França para dá-lo aos venezianos,
ao mesmo tempo que lhes faltava coragem para entrar em luta com estes
e com a França. E se alguém dissesse: o Rei Luís cedeu a Romanha a
Alexandre e o Reino à Espanha para fugir a uma guerra - respondo com
as razões já anteriormente expostas de que - nunca se deve deixar
prosseguir uma crise para escapar a uma guerra, mesmo porque dela não
se foge mas apenas se adia para desvantagem própria. E se alguns
outros alegassem a palavra que o rei havia dado ao Papa, qual a de
realizar para ele aquela conquista em troca da dissolução de seu
casamento e do chapéu cardinalício para o arcebispo de Ruão - respondo
com o que mais adiante se dirá acerca da palavra dos príncipes e de
como se a deve respeitar.


Perdeu, pois, o Rei Luís a Lombardia por não ter respeitado nenhum dos
princípios observados por outros que dominaram províncias e quiseram
conservá-las. Não há aqui milagre algum, mas é sim muito comum e
razoável. E deste assunto falei em Nantes ao arcebispo de Ruão, quando
Valentino, assim popularmente chamado César Bórgia, filho do Papa
Alexandre, ocupava a Romanha: porque, dizendo-me o cardeal de Ruão que
os italianos não entendiam de guerra, retruquei-lhe que os franceses
não entendiam do Estado, pois que, se de tal compreendessem, não
teriam deixado que a Igreja alcançasse tanta grandeza. E por
experiência viu-se que a grandeza da Igreja e da Espanha na Itália foi
causada pela França, e a ruína desta foi acarretada por aquelas.


Disso se extrai uma regra geral que nunca ou raramente falha: quem é
causa do poderio de alguém arruina-se, por que esse poder resulta ou
da astúcia ou da força e ambas são suspeitas para aquele que se tornou
poderoso.

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