sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO VI

CAPÍTULO VI
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS ARMAS PRÓPRIAS E
VIRTUOSAMENTE
(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ARMIS PROPRIIS ET VIRTUTE ACQUIRUNTUR)


Não se admire alguém se, na exposição que irei fazer a respeito dos
principados completamente novos de príncipe e de Estado, apontar
exemplos de grandes personagens; por que, palmilhando os homens, quase
sempre, as estradas batidas pelos outros, procedendo nas suas ações
por imitações, não sendo possível seguir fielmente as trilhas alheias
nem alcançar a virtude do que se imita, deve um homem prudente seguir
sempre pelas sendas percorridas pelos que se tornaram grandes e imitar
aqueles que foram excelentes, isto para que, não sendo possível chegar
à virtude destes, pelo menos daí venha a auferir algum proveito; deve
fazer como os arqueiros hábeis que, considerando muito distante o
ponto que desejam atingir e sabendo até onde vai a capacidade de seu
arco, fazem mira bem mais alto que o local visado, não para alcançar
com sua flecha tanta altura, mas para poder com o auxílio de tão
elevada mira atingir o seu alvo.


Digo, pois, que no principado completamente novo, onde exista um novo
príncipe, encontra-se menor ou maior dificuldade para mantê-lo,
segundo seja mais ou menos virtuoso quem o conquiste. E porque o
elevar-se de particular a príncipe pressupõe ou virtude ou boa sorte,
parece que uma ou outra dessas duas razões mitigue em parte muitas
dificuldades; não obstante, tem-se observado, aquele que menos se
apoiou na sorte reteve o poder mais seguramente. Gera ainda facilidade
o fato de, por não possuir outros Estados, ser o príncipe obrigado a
vir habitá-lo pessoalmente.


Para reportar-me àqueles que pela sua própria virtude e não pela sorte
se tornarem príncipes, digo que os maiores são Moisés, Ciro, Rômulo,
Teseu e outros tais. Se bem que de Moisés não se deva cogitar por ter
sido ele mero executor daquilo que lhe era ordenado por Deus, contudo
deve ser admirado somente por aquela graça que o tornava digno de
conversar com o Senhor. Mas consideremos Ciro e os outros que
conquistaram ou fundaram reinos: achareis a todos admiráveis. E se
forem consideradas suas ações e ordens particulares, estas parecerão
não discrepantes daquelas de Moisés que teve tão grande preceptor. E,
examinando as ações e a vida dos mesmos, não se vê que eles tivessem
algo de sorte senão a ocasião, que lhes forneceu meios para poder
adaptar as coisas da forma que melhor lhes aprouve; e, sem aquela
oportunidade, o seu valor pessoal ter-se-ia apagado e sem essa virtude
a ocasião teria surgido em vão.


Era necessário, pois, a Moisés, encontrar o povo de Israel no Egito,
escravizado e oprimido pelos egípcios, a fim de que aquele, para
libertar-se da escravidão, se dispusesse a segui-lo. Convinha que
Rômulo não pudesse ser mantido em Alba, fosse exposto ao nascer, para
que se tornasse rei de Roma e fundador daquela pátria. Era preciso que
Ciro encontrasse os persas descontentes do império dos medas, e estes
estivessem amolecidos e efeminados pela prolongada paz. Não poderia
Teseu demonstrar sua virtude se não encontrasse os atenienses
dispersos. Essas oportunidades por tanto, fizeram esses homens
felizes, e sua excelente capacidade fez com que aquela ocasião fosse
conhecida de cada um: em conseqüência, sua pátria foi nobilitada e
tornou-se felicíssima.


Os que, por suas virtudes, semelhantes às que aqueles tiveram, tornam-
se príncipes, conquistam o principado com dificuldade, mas com
facilidade o conservam; e os obstáculos que se lhes apresentam no
conquistar o principado, em parte nascem das novas disposições e
sistemas de governo que são forçados a introduzir para fundar o seu
Estado e estabelecer a sua segurança. Deve-se considerar não haver
coisa mais difícil para cuidar, nem mais duvidosa a conseguir, nem
mais perigosa de manejar, que tornar-se chefe e introduzir novas
ordens. Isso porque o introdutor tem por inimigos todos aqueles que
obtinham vantagens com as velhas instituições e encontra fracos
defensores naqueles que das novas ordens se beneficiam. Esta fraqueza
nasce, parte por medo dos adversários que ainda têm as leis conformes
a seus interesses, parte pela incredulidade dos homens: estes, em
verdade, não crêem nas inovações se não as vêem resultar de uma firme
experiência. Donde decorre que a qualquer momento em que os inimigos
tenham oportunidade de atacar, o fazem com calor de sectários,
enquanto os outros defendem fracamente, de forma que ao lado deles se
corre sério perigo.


É necessário, pois, querendo bem expor esta parte, examinar se esses
inovadores se baseiam sobre forças suas próprias ou se dependem de
outros, isto é, se para levar avante sua obra é preciso que roguem, ou
se em realidade podem forçar. No primeiro caso, sempre acabam mal e
não realizam coisa alguma; mas, quando dependem de si mesmos e podem
forçar, então é que raras vezes perigam. Daí resulta que todos os
profetas armados venceram e os desarmados fracassaram. Porque, além
dos fatos apontados, a natureza dos povos é vária, sendo fácil
persuadi-los de urna coisa, mas difícil firmá-los nessa persuasão.
Convém, assim, estar preparado para que, quando não acreditarem mais,
se possa fazê-los crer pela força.


Moisés, Ciro, Teseu e Rômulo não teriam conseguido fazer observar por
longo tempo as suas constituições se tivessem estado desarmados; como
ocorreu nos nossos tempos a Frei Girolamo Savonarola que fracassou nas
suas reformas quando a multidão começou a nele não mais acreditar, e
ele não dispunha de meios para manter firmes aqueles que haviam crido,
nem para fazer com que os descrentes passassem a crer. Por isso, têm
grandes dificuldades no conduzir-se e todos os perigos estão no seu
caminho, convindo que os superem com o valor pessoal; mas superado que
os tenham, quando começam a ser venerados, extintos aqueles que tinham
inveja de sua condição, ficam poderosos, seguros, honrados, felizes.


A tão altos exemplos, quero acrescentar um menor, mas que bem terá
alguma relação com aqueles e que julgo suficiente para todos os outros
semelhantes: é Hierão de Siracusa. Este, de particular, tornou-se
príncipe de Siracusa; também ele, da sorte somente conheceu a ocasião
porque, sendo os siracusanos oprimidos, o elegeram para seu capitão,
donde mereceu ser feito príncipe. E foi de tanta virtude, mesmo na
vida privada, que quem escreveu a seu respeito, disse:quod nihil illi
deerat ad regnandum praeter regnum.


Extinguiu a velha milícia, organizou a nova, abandonou as antigas
amizades, conquistou novas; e, como teve amizades e soldados seus,
pode, sobre tais fundamentos, erigir as obras que desejou: tanto que
custou-lhe muita fadiga para conquistar e pouca para manter

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