sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO XIII

CAPÍTULO XIII
DOS SOLDADOS AUXILIARES, MISTOS E PRÓPRIOS
(DE MILITIBUS AUXILIARIIS, MIXTIS ET PROPRIIS)


As tropas auxiliares, que são as outras forças inúteis, são aquelas
que se apresentam quando chamas um poderoso para que, com seus
exércitos, te venha ajudar e defender, como fez em tempos recentes o
Papa Júlio que, tendo visto na campanha de Ferrara a triste figura de
suas tropas mercenárias, voltou-se para as auxiliares e entrou em
acordo com Fernando, rei da Espanha, no sentido de que este, com sua
gente e armas, viesse ajudá-lo. Estas tropas auxiliares podem ser
úteis e boas para si mesmas, mas, para quem as chame, são quase sempre
danosas, eis que perdendo ficas liquidado, vencendo ficas seu
prisioneiro.


E, ainda que destes exemplos estejam cheias as antigas histórias, não
quero abandonar esta recente lição de Júlio II, cuja deliberação de
entregar-se inteiramente às mãos de um estrangeiro, por querer
Ferrara, não podia ter sido mais insensata. Mas a boa sorte fez surgir
uma terceira circunstância, a fim de que não viesse ele a colher o
resultado de sua má decisão; sendo os seus auxiliares derrotados em
Ravenna e surgindo os suíços que, contra a expectativa de Júlio e de
outros, expulsaram os vencedores, o Papa não se tornou prisioneiro nem
dos vencedores, que fugiram, nem de suas tropas auxiliares, por ter
vencido com outras armas que não as delas. Os florentinos, estando
completamente desarmados, levaram dez mil franceses a Pisa para atacá-
la, resolução essa em razão da qual passaram por maior perigo do que
em qualquer tempo de seus próprios trabalhos. O imperador de
Constantinopla, para opor-se a seus vizinhos, concentrou na Grécia dez
mil turcos que, terminada a guerra, não quiseram abandonar o país, o
que constitui o início da sujeição da Grécia aos infiéis.


Assim, aquele que queira não poder vencer, valha-se destas tropas
muito mais perigosas do que as mercenárias, eis que com estas a ruína
é certa, dado que são todas unidas, todas voltadas à obediência a
outrem. As mercenárias, para te prejudicarem após a vitória,
contrariamente ao que ocorre com as mistas, precisam de mais tempo e
maior oportunidade, não só por não constituírem um todo, como também
por terem sido organizadas e pagas por ti; ainda, um terceiro que
nelas tornes chefe, não pode desde logo assumir tanta autoridade que
te cause dano. Enfim, enquanto nas tropas mercenárias o mais perigoso
é a covardia, nas auxiliares é o valor.


Um príncipe prudente, portanto, sempre tem fugido a essas tropas para
voltar-se às suas próprias forças, preferindo perder com as suas a
vencer com aquelas, eis que, em verdade, não representaria vitória
aquela que fosse conquistada com as armas alheias. Jamais vacilarei em
citar como exemplo César Bórgia e suas ações. Este duque entrou na
Romanha com tropas auxiliares, para aí conduzindo as forças francesas,
com elas tomando Imola e Forli. Mas, depois, não mais lhe parecendo
seguras tais armas, voltou-se para as mercenárias, julgando nelas
encontrar menor perigo; e tomou a seu serviço os Orsini e os Viteili.
Posteriormente, manejando essas forças e achando-as dúbias, infiéis e
perigosas, extinguiu-as e voltou-se para as suas próprias tropas. Pode-
se ver facilmente a diferença que existe entre umas e outras dessas
armas, considerando a modificação da reputação do duque entre quando
tinha apenas os franceses e depois os Orsíni e Vitelli, e quando ele
ficou com soldados seus e sob seu próprio comando: sempre se a
encontrará acrescida, e nem foi suficientemente amado senão quando
todos viram que ele era o senhor absoluto de suas tropas.


Eu não queria abandonar os exemplos italianos e mais recentes;
contudo, não desejo esquecer Hierão de Siracusa, um dos acima
indicados por mim. Este, como já disse, tornado pelos siracusanos
chefe dos exércitos, logo reconheceu não ser útil a tropa mercenária,
por serem seus chefes idênticos aos nossos italianos; parecendo-lhe
não poder conservá-los nem dispensá-los, fez cortar todos eles em
pedaços, passando depois a fazer guerra com tropas suas e não com as
de outrem, Quero, ainda, trazer à lembrança uma alegoria do Velho
Testamento feita a este propósito. Oferecendo-se David a Saul para
lutar com Golias, provocador filisteu, Saul, para encorajá-lo,
revestiu-o com suas próprias armaduras, as quais, uma vez envergadas
por David, foram por ele recusadas: com elas não poderia bem se valer
de si mesmo, preferindo enfrentar o inimigo apenas com sua funda e sua
faca. Enfim, as armas de outrem, ou te caem de cima, ou te pesam ou te
constrangem.


Carlos VII, pai de Luís XI, tendo com sua fortuna e sua virtude
libertado a França dos ingleses, conheceu essa necessidade de armar-se
com forças próprias, e organizou em seu reino, por forma regular, as
armas de cavalaria e de infantaria. Mais tarde, o Rei Luís, seu filho,
extinguiu a infantaria e começou a aliciar os suíços, erro esse que,
seguido de outros, tornou-se, como realmente agora se vê, a razão dos
perigos daquele reino, Na verdade, dando reputação aos suíços, Luis
aviltou todas as suas tropas, já que extinguiu as forças de infantaria
e subordinou sua cavalaria às milícias de outrem, e a esta, acostumada
a militar com os suíços, pareceu não ser possível vencer sem eles. Daí
decorre que não bastam os franceses contra os suíços e, sem os suíços,
não tentam a luta contra os outros. Os exércitos de França, pois, têm
sido mistos, parte de mercenários e parte de tropas próprias, forças
essas que, juntas, são muitos melhores que as simples auxiliares ou as
meramente mercenárias e muito inferiores ao exército próprio. Basta o
exemplo citado, pois o reino de França seria invencível, se a
organização militar de Carlos tivesse sido desenvolvida ou conservada.
Mas a pouca prudência dos homens muitas vezes começa uma coisa que lhe
parece boa, sem se aperceber do veneno que ela encobre, como já disse
acima a respeito das febres éticas.


Portanto, aquele que num principado não conhece os males logo no
início, não é verdadeiramente sábio, o que é dado a poucos. E, se se
considerar o início da ruína do Império Romano, ver-se-á ter ela
resultado do simples começo de aliciamento dos godos, eis que foi dai
que começaram a declinar as forças do Império Romano e todo aquele
valor que se lhe tirava era atribuído a eles. Concluo, pois, que, sem
ter armas próprias, nenhum principado está seguro; ao contrário, fica
ele totalmente sujeito à sorte, não havendo virtude que o defenda na
adversidade. Foi sempre opinião e sentença dos homens sábios, quod
nihíl sit tam infirmum aut instabile, quam fama potentiae non sua vi
nixa. As forças próprias são aquelas que se constituem de súditos, de
cidadãos ou de criaturas tuas; todas as outras são ou mercenárias ou
auxiliares. O modo de organizar as tropas próprias será fácil de
encontrar, se se analisar a organização dos quatro por mim
mencionados, e se se considerar como Felipe, pai de Alexandre Magno, e
muitas repúblicas e principados, se armaram e organizaram; a essas
organizações eu me reporto inteiramente.

Nenhum comentário: