sábado, 24 de novembro de 2007

O PRÍNCIPE - CAPÍTULO VII

CAPÍTULO VII
DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM AS ARMAS E FORTUNA DOS
OUTROS
(DE PRINCIPATIBUS NOVIS QUI ALIENIS ARMIS ET FORTUNA ACQUIRUNTUR)


Aqueles que somente por fortuna se tornam de privados em príncipes,
com pouca fadiga assim se transformam, mas só com muito esforço assim
se mantêm: não encontram nenhuma dificuldade pelo caminho porque
atingem o posto a vôo; mas toda sorte de dificuldades nasce depois que
aí estão. São aqueles aos quais é concedido um Estado, seja por
dinheiro, seja por graça do concedente: como ocorreu a muitos na
Grécia, nas cidades da Jônia e do Helesponto, onde foram feitos
príncipes por Dario, a fim de que as conservassem para sua segurança e
glória; como eram feitos, ainda, aqueles imperadores que, por
corrupção dos soldados, de privados alcançavam o domínio do Império.


Estes estão simplesmente submetidos à vontade e à fortuna de quem lhes
concedeu o Estado, que são duas coisas grandemente volúveis e
instáveis: e não sabem e não podem manter a sua posição. Não sabem,
porque, se não são homens de grande engenho e virtude, não é razoável
que, tendo vivido sempre em ambiente privado, saibam comandar; não
podem, porque não têm forças que lhes possam ser amigas e fiéis.
Ainda, os Estados que surgem rapidamente, como todas as demais coisas
da natureza que nascem e crescem depressa, não podem ter raízes e
estruturação perfeitas, de forma que a primeira adversidade os
extingue; salvo se aqueles que, como foi dito, assim repentinamente se
tornaram príncipes, forem de tanta virtude que saibam desde logo
preparar-se para conservar aquilo que a fortuna lhes pôs no regaço,
formando posteriormente as bases que os outros estabeleceram antes de
se tornar príncipes.


Destes dois citados modos de vir a ser príncipe, por virtude ou por
fortuna, quero apontar dois exemplos ocorridos nos dias de nossa
memória: estes são Francisco Sforza e César Bórgia. Francisco, pelos
meios devidos e com grande virtude, de privado tornou-se duque de
Milão; e aquilo que com mil esforços tinha conquistado, com pouco
trabalho manteve. Por outro lado, César Bórgia, pelo povo chamado
Duque Valentino, adquiriu o Estado com a fortuna do pai e, juntamente
com aquela, o perdeu; isso não obstante fossem por ele utilizados
todos os meios e feito tudo aquilo que devia ser efetivado por um
homem prudente e virtuoso, para lançar raízes naqueles Estados que as
armas e a fortuna de outrem lhe tinham concedido. Porque, como se
disse acima, quem não lança os alicerces primeiro, com uma grande
virtude poderá estabelecê-los depois, ainda que se façam com
aborrecimentos para o construtor e perigo para o edifício. Se, pois,
se considerarem todos os progressos do duque, ver-se-á ter ele
estabelecido grandes alicerces para o futuro poderio, os quais não
julgo supérfluo descrever, pois não saberia que melhores preceitos do
que o exemplo de suas ações poderia indicar a um príncipe novo; e se
as suas disposições não lhe aproveitaram, não foi por culpa sua, mas
sim em resultado de uma extraordinária e extrema má sorte.


Tinha Alexandre VI, ao querer tornar grande o duque seu filho, muitas
dificuldades presentes e futuras. Primeiro, não via meio de poder fazê-
lo senhor de algum Estado que não fosse Estado da Igreja; voltando-se
para tomar um destes, sabia que o duque de Milão e os venezianos não
lho permitiriam, porque Faenza e Rimini estavam já sob a proteção dos
venezianos. Via além disto as armas da Itália, e em especial aquelas
de que poderia servir-se, encontrarem-se nas mãos daqueles que deviam
temer a grandeza do Papa; não podia fiar-se, assim, pertencendo todas
elas aos Orsíni e Colonna e seus partidários. Era, pois, necessário
que se perturbasse aquela organização dos Estados italianos e fossem
desarticulados os pertencentes àqueles, para poder assenhorear-se
seguramente de parte dos mesmos. Isso foi-lhe fácil, eis que encontrou
os venezianos que, levados por outras causas, tinham se posto a fazer
com que os franceses retornassem à Itália, ao que não somente não se
opôs, como também tornou mais fácil com a dissolução do primeiro
matrimônio do Rei Luís. Passou, portanto, o rei à Itália com a ajuda
dos venezianos e consentimento de Alexandre: nem bem era chegado a
Milão, já o Papa dele obteve tropas para a conquista da Romanha, a
qual tornou-se possível em razão da reputação do rei. Tendo ocupado a
Romanha e batido os partidários dos Colonna, o duque, querendo manter
a conquista e avançar mais à frente, tinha duas coisas que tal lhe
impediam: uma, as suas tropas que não lhe pareciam fiéis, a outra, a
vontade da França; isto é, temia o duque que lhe falhassem as tropas
dos Orsíni, das quais se valera, não só impedindo-o de conquistar,
como também tomando-lhe o conquistado, bem como receava que o rei não
deixasse de fazer-lhe o mesmo. Dos Orsíni teve prova quando, depois da
tomada de Faenza, assaltando Bolonha, os viu irem friamente a esse
assalto; acerca do rei, conheceu sua disposição quando, tomado o
ducado de Urbino, atacou a Toscana; o rei fê-lo desistir dessa
campanha. Em conseqüência de tal, o duque deliberou não mais depender
das armas e fortuna dos outros. Inicialmente, enfraqueceu as facções
dos Orsíni e dos Colonna em Roma; para tanto, atraiu para junto de si
todos os adeptos dos mesmos, que fossem gentis-homens, fazendo-os seus
gentis-homens, dando-lhes grandes estipêndios e os honrando. Segundo
suas qualidades, com comandos e governos; de forma que, em poucos
meses, a afeição que mantinham pelas facções foi extinta e voltou-se
toda ela para o duque. Depois, esperou a ocasião de eliminar os
Orsíni, dispersos que já estavam os da casa Colonna, ocasião que lhe
surgiu bem e que ele melhor aproveitou; porque, tendo percebido os
Orsíni, tarde porém, que a grandeza do duque e da Igreja era a sua
ruína, organizaram uma conferência em Magione, no Perugino. Dessa
reunião nasceram a rebelião de Urbino, os tumultos da Romanha e
infinitos perigos para o duque, o qual a todos superou com o auxílio
dos franceses.


E, readquirida a reputação, não confiando na França nem nas outras
tropas estrangeiras, para não as ter fortalecidas, socorreu-se da
astúcia. E tão bem soube dissimular seus sentimentos, que os Orsíni,
por intermédio do Senhor Paulo, reconciliaram-se com ele: para
assegurar-se melhor deste intermediário, o duque não deixou de
dispensar-lhe cortesia de toda natureza, dando-lhe dinheiro, roupas e
cavalos; tanto assim que a simplicidade dos Orsíni levou-os a
Sinigalia, às mãos do duque. Eliminados, pois, estes chefes,
transformados os partidários dos mesmos em amigos seus, tinha o duque
lançado muito boas bases para o seu poderio, possuindo toda a Romanha
com o ducado de Urbino, parecendo-lhe, ainda, ter tornado amiga a
Romanha e ganho para si todas aquelas populações que começavam a
experimentar o seu bem-estar.


E, porque esta parte é digna de ser conhecida e imitada pelos outros,
não desejo omiti-la. Tomada que foi a Romanha, encontrando-a dirigida
por senhores impotentes, os quais mais depressa haviam espoliado os
seus súditos do que os tinham governado, dando-lhes motivo de desunião
ao invés de união, tanto que aquela província era toda ela cheia de
latrocínios, de brigas e de tantas outras causas de insolência, o
duque julgou necessário, para torná-la pacífica e obediente ao poder
real, dar-lhe bom governo. Por isso, aí colocou Ramiro de Orco, homem
cruel e solícito, ao qual deu os mais amplos poderes. Este, em pouco
tempo, tornou-a pacífica e unida, com mui grande reputação. Depois,
entendeu o duque não ser necessária tão excessiva autoridade, e isso
porque não duvidava pudesse vir a mesma a tornar-se odiosa; instalou
um juízo civil no centro da província, com um presidente
excelentíssimo, onde cada cidade tinha o seu advogado. E porque sabia
que os rigorismos passados tinham dado origem a algum ódio, para
limpar os espíritos daquelas populações e conquistá-los completamente,
quis mostrar que, se alguma crueldade havia ocorrido, não nascera
dele, mas sim da triste e cruel natureza do ministro. E, servindo-se
da oportunidade, fez colocarem-no uma manhã, na praça pública de
Casena, cortado em dois pedaços, com um pau e uma faca ensangüentada
ao lado. A ferocidade desse espetáculo fez com que a população ficasse
ao mesmo tempo satisfeita e pasmada.


Mas voltemos ao ponto de partida. Digo que, encontrando-se o duque
bastante forte e relativamente garantido contra os perigos presentes,
por ter-se armado a seu modo e ter em boa parte dissolvido aquelas
tropas que, próximas, poderiam molestá-lo, restava-lhe, querendo
prosseguir com as conquistas, o temor ao rei de França, porque sabia
como tal proceder não seria suportado pelo mesmo que, tarde, havia se
apercebido de seu erro. Começou, por isso, a procurar novas amizades e
a tergiversar com a França na incursão que os franceses fizeram no
reino de Nápoles, contra os espanhóis que assediavam Gaeta. A sua
intenção era garantir-se contra eles, o que ter-lhe-ia surtido pronto
efeito se Alexandre tivesse continuado vivo.


Esta foi a sua política quanto às coisas presentes.


Mas, quanto às futuras, ele tinha a temer, inicialmente, que um novo
sucessor ao governo da Igreja não fosse seu amigo e procurasse tomar-
lhe aquilo que Alexandre lhe dera; e pensou proceder por quatro modos:
primeiro, extinguir as famílias daqueles senhores que ele tinha
espoliado, para tolher ao Papa aquela oportunidade; segundo,
conquistar todos os gentis-homens de Roma, como foi dito, para poder
com eles manter o Papa tolhido; terceiro, tornar o Colégio mais seu o
quanto possível; quarto, conquistar tanto poder antes que o pai
morresse, que pudesse por si mesmo resistir a um primeiro impacto.
Destas quatro coisas, à morte de Alexandre ele havia realizado três,
estando a quarta quase terminada: porque dos senhores despojados ele
matou quantos pode alcançar e pouquíssimos se salvaram; tinha
conseguido o apoio dos gentis-homens romanos e no Colégio possuía mui
grande parte; e, quanto à nova conquista, resolvera tornar-se senhor
da Toscana, possuía já Perúgia e Piombino e havia tomado a proteção de
Pisa.


Como não mais precisasse ter respeito à França (que o desmerecera por
estarem já os franceses despojados do Reino pelos espanhóis, de forma
que cada um deles necessitava comprar a sua amizade), saltaria sobre
Pisa. Depois disso, Lucca e Ciena cederiam prontamente, parte por
inveja dos florentinos, parte por medo; os florentinos não teriam
remédio: o que, se tivesse acontecido (deveria ocorrer no mesmo ano em
que Alexandre morreu), conferir-lhe-ia tantas forças e tanta reputação
que ele ter-se-ia mantido por si mesmo, não mais dependendo da fortuna
e das forças dos outros, mas sim de sua própria potência e virtude.
Mas Alexandre morreu cinco anos depois que ele começara a desembainhar
a espada. Deixou-o apenas com o Estado da Romanha consolidado, com
todos os outros no ar, em meio a dois fortíssimos exércitos inimigos e
doente de morte.


Havia no duque tanta bravura indômita e tanta virtude, conhecia tão
bem como se conquistam ou se perdem os homens e talmente sólidos eram
os alicerces que assim em tão pouco tempo havia lançado, que, se não
tivesse tido aqueles exércitos sobre si, ou se estivesse são, teria
vencido qualquer dificuldade. E que os seus alicerces fossem bons, viu-
se: por que a Romanha esperou-o mais de um mês; em Roma, ainda que
apenas meio vivo, esteve em segurança e, se bem os Baglioni, Vitelli e
Orsíni viessem a Roma, nada puderam fazer contra ele; se não pode
fazer papa quem queria, pelo menos evitou que o fosse quem ele não
queria. Mas, se por ocasião da morte de Alexandre ele tivesse estado
são, tudo lhe teria sido fácil. Disse-me ele, no dia em que foi eleito
Júlio que havia cogitado de tudo aquilo que podia acontecer morrendo o
pai e para tudo encontrara remédio, mas jamais havia pensado, além da
morte de seu pai, que ele mesmo, também, pudesse estar para morrer.


Relatadas, assim, todas as ações do duque, eu não saberia repreendê-
lo; antes penso que, como o fiz, deva ser proposto à imitação de todos
aqueles que por fortuna e com as armas dos outros subiram ao poder.
Porque, tendo grande ânimo e alta intenção, ele não podia portar-se de
outra for ma; aos seus desígnios, somente se opuseram a brevidade da
vida de Alexandre e a sua enfermidade, Quem, pois, julgar necessário,
no seu principado novo, assegurar-se contra os inimigos, adquirir
amigos, vencer ou pela força ou pela fraude, fazer-se amar e temer
pelo povo, seguir e reverenciar pelos soldados, eliminar aqueles que
podem ou têm razões para ofender, ordenar por novos modos as
instituições antigas, ser severo e grato, magnânimo e liberal,
extinguir a milícia infiel, criar uma nova, manter a amizade dos reis
e dos príncipes, de modo que beneficiem de boa vontade ou ofendam com
temor, não poderá encontrar exemplos mais recentes que as ações do
duque.


Somente se pode acusá-lo na criação de Júlio pontífice, onde má foi a
eleição; porque, como foi dito, não podendo fazer um papa de acordo
com seu desejo, ele podia impedir fosse feito quem não quisesse; e não
devia jamais consentir no papado daqueles cardeais que tivessem sido
por ele ofendidos, ou que, tornados papas, viessem a temê-lo. Na
verdade, os homens ofendem ou por medo ou por ódio. Os que ele
ofendera eram, entre outros, San Piero ad Vincula, Colonna, San
Giorgio, Ascânio; todos os outros, tornados papas, tinham por que temê-
lo, exceto o de Ruão e os espanhóis; estes, por afinidade e por
obrigações, aquele pelo poder e por ter ao seu lado o reino da França.
Conseqüentemente, o duque, antes de tudo, devia criar para um espanhol
e, não podendo, devia consentir que fosse eleito o cardeal de Ruão e
não o de San Piero ad Vincula. E quem acreditar que nas grandes
personagens os novos benefícios façam esquecer as velhas injúrias,
engana-se. Errou, pois, o duque nessa eleição, tornando-se ele mesmo a
causa de sua ruína final.

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